Jacinto Coutinho
Na entrevista da semana, o Professor
Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, professor titular de direito processual penal da Universidade Federal do Paraná, especialista em Direito pela PUC-PR, Mestre pela UFPR e Doutor pela Universitá degli studi di Roma "La Sapienza".
É um dos grandes nomes em Processo Penal no Brasil e, dentre outros, um dos críticos mais respeitados nessa matéria.
Nesta entrevista, ele toca em pontos muito interessantes, além de desmentir certos sofismas e conceitos equivocados espalhados pelo senso comum.
Por que a Legislação brasileira é tão ineficaz?
Desculpe-me, mas acho que há um equívoco na pergunta: a legislação brasileira, em matéria penal (vista no sentido lato, ou seja, abrangendo todas as disciplinas da área criminal) não é ineficaz, muito menos "tão ineficaz". Para tanto perceber basta apenas pensar no seguinte: o que significa ser ela "ineficaz"? Seria isso a falta de condenação? Mas as cadeias e penitenciárias estão lotadas, melhor, superlotadas, a ponto de se falar em "depósitos humanos", ou seja, em lugares que cabem 10 presos, por exemplo, tem-se 68, como se viu dias passados em reportagens dos jornais. Seria, então, por que temos poucas leis? Não pode ser.
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Afinal, temos algo em torno de 310 leis tratando de matéria penal e ninguém, em verdade, sabe tudo o que está tipificado como crime, ou melhor, são tantas as leis que, em alguns casos já se deveria estar pensando em escusar certas condutas por ignorância da lei. Então é por que ela já não funciona mais – ou tanto – como referência às condutas dos cidadãos? Aí a questão muda de rumo, não propriamente por conta das leis penais mas em função do que se espera, do que se quer delas.
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Enfim, sabemos há muito que as leis penais não se prestam para corrigir – ou reformar – a sociedade (isto é matéria pacífica e só não sabe quem não quer ou é mal-intencionado), porque se não presta a servir de fundamento moral. O Direito, aqui, é sancionador, punitivo; e pronto. Tanto que, teoricamente, cumprida a pena, o cidadão volta – ou deveria voltar – à sociedade de "alma lavada" porque, enfim, como dizem eles: "paguei pelo meu crime". A moral, então, fica fora, o que não significa não ter importância. Ela está, porém, não no Direito Penal, mas nos valores e eles na cabeça, principalmente, dos moralistas, não raro falsos e por um motivo banal: têm como corretos os seus próprios valores e, com certeza, nem sempre são os mais apropriados. Para essa gente – até certo ponto ingênua, para dizer o menos –, o Direito Penal deve forjar, como ponta-de-lança da sociedade, um medo irrestrito. O problema é que isso não ocorre porque a base dos laços sociais sólidos e democráticos, como sabe qualquer pensador mediano e mormente aqueles que estudaram a Semiótica mais a fundo como Iúri Lotman, por exemplo, não está no medo, mas na vergonha.
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Assim, se se partir de Lévi-Strauss vai-se perceber que a cultura, como sistema de limitações complementares impostas ao comportamento natural do homem só produzirá efeitos de ordem psicológica, no sentido de se sustentar os referidos laços sociais sólidos e democráticos, se fundada na vergonha. É ela que nos faz voltar à vida pois “nos convida a resgatar nossa dignidade com novas ações e a voltar para o mundo de cara lavada” (como sustentou Contardo Calligaris em artigo na Folha de São Paulo) após – para usar uma expressão bem conhecida – a penitência pelo erro cometido; além de ajudar a cada um, por tal caminho, encontrar um seu "lugar", o que se pode ver nas relações básicas: pais e filhos, por exemplo.
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Não há de se afastar, porém, uma cultura forjada pelo medo, como demonstrou a história, mas ela conduz a uma sociedade de bárbaros, uma sociedade onde a regra é a barbárie e, como conseqüência, tende a se esfacelar. A União Soviética foi um bom exemplo disso; mas aqui cabem todas as formas de tirania, inclusive a que estão a pregar alguns por este país afora. Pobre de nós, tão ricos de natureza e tão pobres de idéias e sensibilidade para perceber a diferença, o outro como tal, ou seja, aquilo que funda a ética, uma ética da alteridade como quer Dussel.
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Enfim, não temos leis penais ineficazes; temos – isso sim – muita gente palpiteira, dona da verdade, que por ignorância pensa sempre em soluções fáceis. Se não tomarmos cuidado e usarmos a razão democrática para contestá-los, acabam por nos levar ao cadafalso, à guerra civil ou a um golpe de estado encabeçado por qualquer tiranete carismático como Napoleão ou Idi Amin Dada Oumee. O problema é que, em tais situações, o que se vai é a própria razão. Como disse Lao Tsé, o problema da guerra é que ninguém ganha e depois que se dá o primeiro tiro ninguém sabe por que está atirando. Assim, com a Constituição nas mãos precisamos resistir, porque ainda temos responsabilidade com o futuro.
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A solução é "apertar o laço" das penas ou apenas fazer com que sejam efetivas?
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Se "apertar o laço das penas" significa aumentá-las, trata-se de um equívoco brutal. Pensar isso é não olhar para a história, inclusive a nossa e recente. Basta ver que a Lei dos Crimes Hediondos é de 1990 e, hoje, 2007, estamos falando, ainda, do problema do aumento da criminalidade, embora não se tenha qualquer estatística confiável. Fosse eficaz – ou eficiente como querem os neoliberais – "apertar o laço das penas" já teríamos tido os resultados que imaginaram; ou imaginavam os ingênuos (será?) que vendiam a doce ilusão, então, em troca de votos. Dessa gente, alguns são até bem-intencionados (e deles é que Agostinho Ramalho indaga: "quem nos salva da bondade dos bons?"), mas boa parte são crápulas porque ganham com o caos, com a desgraça alheia, com a miséria do nosso povo, sempre meio entorpecido por golpes de retórica fácil que se não consegue desbaratar. Assim, se deste modo não vai, poderia ir com a efetivação das leis penais? Em certo sentido sim e em certo sentido não.
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Por evidente que as leis devem ser efetivadas, a começar pela Constituição que já vai para os 19 anos e não consegue sair do papel em muitos e muitos pontos. Por isto, uma boa maneira de efetivar as leis penais seria seguir à risca a Constituição que, em verdade, não se faz, por vários motivos. Isto é uma parte das razões do sim. Quanto ao não, a resposta já foi referida, pelo menos em parte. Ora, o princípio da legalidade, visto de forma mais ampla (abrangente da reserva de lei, tipicidade e taxatividade, como deve ser, perante a Constituição), não se compadece com um número tão elevado de leis penais, algumas com tipos absurdos. Por outro lado, muitas condutas, hoje, merecem tipificação, o que é sintoma de estarem as tais leis desatualizadas. Urge, então, que se convoque gente séria e capaz de consolidar o que aí está e produzir, sem vedetismo e moralismo (que aqui não cabe), leis penais adequadas para o nosso tempo, tudo com muita discussão, com a mais ampla discussão possível.
O que pode ser feito para agilizar os trâmites dos processos?
A solução mais importante, quando o assunto é processo penal, é compatibilizar o Código de Processo Penal - e as leis extravagantes - com a Constituição da República. Não entendo, ou melhor, entendo mas não aceito por que se resiste tanto a isso. Se é assim, precisamos de um novo CPP com tal cara, ou seja, compatível com o sistema acusatório, como pede a Constituição, por sinal em total defasagem com o CPP atual, de 1941 (cópia malfeita do Codice Rocco, de 1930, da Itália fascista), que, como sabem os menos desavisados, é totalmente vinculado ao sistema inquisitório, justo porque, por primário, atribui a gestão da prova, sobretudo, ao juiz.
Por outro lado, um novo CPP não pode vir por reformas parciais (como as que se vem pretendendo fazer, mais ou menos como aquelas que estão demolindo o Código de Processo Civil, para desespero geral), justo por não permitirem uma sistematicidade ou, pelo menos, a compreensão dela. A reforma, deste modo, deve ser global, total, feita por gente que entende verdadeiramente do sistema processual e, mais, que se disponha a discutir com o país inteiro para, aí sim, ter-se o melhor para as nossas condições. A estrutura acusatória, enfim, por força do princípio reitor do sistema – dispositivo – tem bases que apontam na direção de uma maior velocidade, tudo sem se perder o lastro democrático do processo. O que se não faz, porém, neste campo, é milagre. É preciso entender, assim, ser a Constituição incompatível com a supressão – por razões óbvias e que é despiciendo discutir – de direitos fundamentais, dentre os quais a de um devido processo legal. Sabendo o que é isto – e todos sabem embora alguns finjam não saber ou não querer saber – não podemos admitir fórmulas mirabolantes e, dentre elas, aquelas que imaginam julgamentos açodados, apressados.
Neste tema – quando em jogo a liberdade de alguém, que pode ser você ou qualquer um – é preciso cautela, parcimônia. A melhor decisão é aquela madura e ela, na extragrande maioria das vezes, não é fruto da pressa. Se o preço democrático a pagar para se ter decisões mais justas e corretas possíveis for se ter um pouco mais de tempo, pois que assim o seja, dado não termos remédio algum satisfatório para os erros; e que não são poucos. Como lembrou Carnelutti, o processo penal lida com o ser e não com o ter, próprio dos processos da área cível onde, em geral, o conserto pode se dar pela indenização, ou seja, algo inimaginável no campo processual penal. Por sinal, neste tema, cada um deve pensar em si – egoisticamente – e imaginar o processo penal que gostaria de ter para si. Eis uma boa base democrática. Ademais, é por demais importante, na questão da agilidade processual, ter-se operadores que saibam, que entendam do processo – e do Direito em geral – e da sua dogmática. Aqui, os principais destinatários das leis processuais são os juízes e a eles isto deve ser cobrado com mais vigor. Quando alguns juízes alternativos (ligados ao famoso e mal-entendido Movimento Alternativo) terminavam os processos em 40 dias em média, ninguém noticiava porque, quando se fosse indagar o motivo, por certo teria que se defrontar com a questão do estudo, do saber; e da opção ideológica; e aí não interessava – e não interessa - aos senhores do status quo.
Melhor exemplo, nesta passagem, é o Desembargador Amilton Bueno de Carvalho, do TJ/RS, um exemplo de magistrado. Com os processos sempre em dia e terminando-os dentro daquela média – ou um pouco menos – exercia seu poder jurisdicional, quando juiz de primeira instância (como faz até hoje, embora dentro das formalidades próprias do Tribunal), com a humildade dos sábios e a perene desconfiança das suas imaginárias razões, consciente sempre de serem elas facilmente iludidas pelas aparências. Nunca abriu mão, contudo, da Constituição. Tive o prazer, certa feita, de assistir a um interrogatório feito por ele quando titular da 2ª Vara Criminal de Porto Alegre, pelos idos de 1990 ou 1991. Ao entrar na sala de audiência, vestia roupa esporte e sentou-se ao lado do réu interrogando e lhe disse desde o “lugar” de magistrado: “Sou o juiz desta Vara e quero que tu saiba tchê que, para mim, és inocente, até prova em contrário. Como determina o Código de Processo Penal devo te dizer que tu podes ficar em silêncio e não conversar comigo sobre aquilo que está escrito na denúncia dizendo que tu fizesse mas, se isto acontecer, nada, absolutamente nada, será usado contra ti.” Assim – vis-à-vis –, disparou: “Tu queres conversar comigo?” E o interrogando, atônito, mas já se sentindo íntimo, respondeu com confiança: “Se é assim, doutor, quero.” Seguiu-se, após, um bate-papo sem qualquer truque ou “pegadinha”, mostrando o interrogando, já um senhor de certa idade, muita convicção no que falava, sendo tudo registrado ipsis litteris. Ao terminar, indagou ao órgão do Ministério Público e ao procurador do réu se tinham reperguntas a fazer, o que só veio com a reforma de 2003, pela Lei n° 10.792, como se se precisasse de uma lei infraconstitucional para fazer valer o due process of law e, mais particularmente, o contraditório, expressos na Constituição, coisa que para ele era da prática cotidiana. Findo o interrogatório, a interrogado saiu com um ar de alívio, como se tivesse, pela palavra, tirado de si um grande fardo. Por evidente, pasmo, achei o ato interessantíssimo; um exemplo a ser seguido. Mas não resisti e perguntei ao Amilton: “Como é aquele papo de ‘para mim és inocente’?” “É isto mesmo!”, respondeu-me ele. “Nunca tive dúvida mas, hoje, diante da Constituição, para mim, o réu ou os réus são, todos, inocentes, até que a acusação prove o contrário.” Tal posição ele confirmaria mais tarde em texto de rara qualidade que tem por título “Sobre la jurisdición criminal en Brasil, hoy. Carta abierta de un juez brasileño a un juez español”, inserto no livro Direito Alternativo em Movimento, onde dialoga com o caro Perfecto Andrés Ibáñez, hoje na Corte Constitucional espanhola: “La última es la hipótesis teórica básica que me anima: llego a todos los procesos convencido de la inocencia (hay um prejuicio con base en el principio de la presunción) y solo condeno cuando no fuera posible, a pesar de todos los esfuerzos interpretativos, absolver...”. (p. 29). Tive a sensação, após aquela audiência, que havia, desde o meu olhar e sentir, uma esperança; de que isso se alastrasse e a Constituição fosse, de fato, cumprida, incorporada como cultura, introjetada.
Por óbvio, nem sempre é assim ainda hoje, ou melhor, o normal é se seguir com uma postura oposta, marcada pelo imaginário, pelo engodo das palavras e imagens que povoam as cabeças, não raro cheias de prévias verdades e certezas, sem dúvida como fruto do sistema inquisitório por nós praticado. É o primado das hipóteses sobre os fatos da lógica deforme a que se referiu Franco Cordero com total razão. Reina, ainda, no Brasil e num espaço medieval, o Papa Inocêncio III e sua Bula Vergentis in senium. Pobre de nós, hereges, com freqüência condenados antes e processados depois. E pensar que o homem está pensando em chegar a Marte...
Como vencer a burocracia? Cumprindo a Constituição e com domínio irrestrito das regras processuais. Eis um primeiro momento e, talvez, o mais importante. Claro, porém, que é imprescindível se ter os meios materiais e pessoais adequados para o suporte das atividades. Em tempos de neoliberalismo, contudo, onde se quer economizar às custas das prioridades – inclusive – é difícil pensar que terão olhos para isso. Assim, parece estarmos condenados, mantido o status quo, a mudanças que não mudam nada, tal e qual aquela proposta por Tancredi, de Lampedusa, em Il gattopardo.
Penas alternativas poderiam ser usadas de maneira mais eficaz, desarrochando o sistema penitenciário?Por evidente. É só pensar para que têm servido algumas prisões, de gente que não deveria estar no sistema penitenciário sendo impregnada. É preciso entender que, no Brasil, as pessoas não vão ficar para sempre na prisão e, assim, não temos o direito de colocar lá um mero ladrão (que se poderia emendar de outro modo) para de lá tirarmos um latrocida, sendo que, como se sabe, a diferença entre eles está em uma vida ceifada; e de um cidadão inocente, por óbvio. Faz-se mister, porém, juntar gente competente e séria para pensar sobre a matéria. Tenho certeza que muito de bom sairia dai, mormente se se discutisse com o país inteiro, porque as soluções nem sempre são as mesmas neste continente chamado Brasil; e que deve ser ouvido, de norte a sul.
A redução da maioridade penal teria mesmo algum impacto sobre os índices de violência do país?
Teria, sim. Para aumentar os índices. Está provado estatisticamente – em Dissertação da Professora Renata Ceschin Melfi, com pesquisa de campo, no Mestrado em Direito da UFPR, ora no prelo na Editora Lumen Júris, em trabalho brilhante que leva em consideração a situação de Curitiba durante longo período e, portanto, uma base confiável de coleta de dados – que tal redução é um equívoco inominável. Ela satisfaz, é certo, para muitos, o ódio que têm dos criminosos – mormente porque sempre são os outros e todos se vêm na condição de atirar a primeira pedra, como se fossem vestais, de alva pureza e imaculadas –, com um discurso que soa como sintoma. Atitude do gênero é uma sandice, uma tolice; e sempre vem pensada para o filho dos outros. Com o que se passa nos presídios e um mínimo de ética, não podemos pensar em algo do gênero.
Antes, o ECA já é muito duro, embora as pessoas não saibam – ou não queiram saber – disso. Em verdade, o que se precisa fazer é investir, com vigor, na criança e no adolescente como prioridade inarredável, de modo a não deixar que chegue ao ponto de cometer algum crime. Somos todos responsáveis por essa gente e não podemos – nem devemos – pensar que se trata de uma questão pura e simples de governo. Em tempos de governos neoliberais, como os nossos, as prioridades são outras, como se sabe, e não se pensa em executar uma política pública prioritária que dê conta de problema deste tipo. Deste modo, resta-nos pouco; e pouca esperança. O futuro a Deus pertence, como dizia minha avó, en passant, com razão.
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E quanto à violência crescente dos jovens da classe média?Era algo previsível, por conta do esgarçar promovido nos laços sociais básicos, aos quais já me referi. Hoje, dizem alguns especialistas, 90% da criminalidade violenta (a que mais preocupa a todos) está relacionada ao tráfico de drogas. Portanto, grande parte dos homicídios, furtos e roubos provêm da questão das drogas. Ora, isso se enfrenta com uma política pública séria, a começar pela descriminalização do crime em relação ao usuário; e não fazendo o que fizeram com a última reforma, no ano passado, pela Lei n° 11.343/06.
Aqui os neoliberais poderiam intervir, mormente porque pensam e jogam sempre com o lucro. Poderiam enfrentar o problema de frente e usar a sugestão dada por Milton Friedman em entrevista ao M 19, um jornal espanhol: o governo – com seriedade, disse o professor de Chicago, é preciso reconhecer – deve encampar o comércio e fornecer as drogas, razão pela qual teria lucro, mas garantiria a assepsia e, ao mesmo tempo, estaria a postos para ajudar os viciados a saírem do vício. Claro que tal atitude é uma asnice se não se operar na ante-sala, buscando evitar que se chegue lá. Aí o problema é mais complexo, mas algo sobra de certeza: não se trata de condutas – como em geral se pensam aquelas criminosas – da classe pobre e sim da classe média e alta, embora também alcance o dito estamento social. Neste ponto, os maiores arautos da moralidade se enfrentam com o espelho.
E agora José? Pena de morte para essa gente – gente da gente – também? Do contrário, o tal discurso era tão-só hipocrisia? Nem tanto céu, nem tanto terra. Precisamos colocar a cabeça no lugar e pensar – como têm feito no primeiro mundo – em soluções adequadas. O que se não pode fazer, todavia, é jogar a sujeira para baixo do tapete, fingindo não existir o problema. Assim sendo, é necessário indagar sobre as causas e a prática tem demonstrado ser a principal delas – embora existam tantas outras – a falta de limites, o que é indicativo de um quase eterno gozar (j’ouissens, diria Lacan) porque, de um modo geral, tudo o que querem as crianças e os adolescentes, na classe média e alta, têm, dado se lhes dar, mormente pelo fato de se ter para dar e, não raro, por ser mais cômodo; ou ambos. A dificuldade, como se sabe, é que se não há limite, não se recalca e se não se recalca, não se deseja. E sem desejo não se vai adiante, razão por que se vai em busca de um limite para fazer a engrenagem girar e a vida ter algum sentido.
É muito triste ver as pessoas dizerem: "Eu fiz tudo por meu filho e olha o que ele me fez!". Afinal, para gente assim é preciso questionar se, de fato, "fez tudo mesmo", ou seja, se lhe foi dado o devido limite. Uma vez, à mesa, durante um almoço, talvez para ser “moderninho” (era o início dos anos 70 e vivíamos o rescaldo do 68, com contra-ataques sem piedade) e imitar meus amigos (dos quais dois morreram de overdose, quiçá para mostrar a todos – usuários ou não como eu, salvo pelo Judô – que aquilo não levava a lugar algum senão aquele: passaporte para o inferno; e a imensa saudade deles), chamei minha mãe de “tu” (em bom catarinense), pela primeira, única e última vez. Meu pai, sem pensar, levantou a cabeça e em tom áspero perguntou: “Como?”
Abusado, como sói acontecer com gente com 12 para 13 anos, repeti; e levei uma carraspana inesquecível, o que me deixou com uma vergonha indescritível, diante de todos, mesmo porque minha mãe sempre tinha sido “senhora” e assim deveria ser, segundo meu pai, em razão de ser minha mãe e, sobretudo, por ocupar um lugar tal e qual me deveria fazer pensar e ter certeza de que quando precisasse dela estaria ali, presente, como sempre esteve quando estava eu quase a morrer nas infindáveis crises asmáticas. Minha mãe era uma santa; e suportou tudo de todos, mais até do que devia; e talvez até não se importasse com aquele infeliz “tu”, dado saber, também, o seu “lugar”. Meu pai era um homem culto, sério, reto, honestíssimo, e não entendia muita coisa da psique humana mas, nascido no início do século passado tinha plena ciência do porquê haveria de ser chamado de “senhor”, pelos menos pelos filhos. Ele, no seu rigor – inclusive para consigo – outorgava-nos o nosso “lugar” de filhos e, com atitudes como aquela, chamava para ele a responsabilidade e o “lugar” de pai, desde sempre reconhecido por todos nós. Eis o “lugar” da referência: ganhar o “lugar” de filho desde aquele “lugar” de pai é poder almejar ser, um dia, quem sabe, também um pai.
Em uma época de pura contestação, com as contraprestações devidas (a turma do 68, em geral, seguia hippie ou mesmo quem não fosse andava na onde e não queria se comprometer com nada, meio no estilo paz e amor e é proibido proibir, já sinalizando para problemas futuros que agora aparecem aos montões), sobrou-nos as duras respostas e, de conseqüência, um duelo contínuo matizado entre amor e ódio, justo por não mais aceitarmos que as “coisas eram porque eram” ou, como era mais freqüente: “é porque é: e basta!”. A coisa já não era mais assim; e isso herdamos do 68. Nada tem a ver, porém, com os “lugares”, a referência e o respeito por ela, incondicional na versão do meu amado pai, ao qual sempre amei, admirei e respeitei, apesar dos pesares, ou seja, das discordâncias.
Enfim, nada daquilo me tirou qualquer pedaço, nem aos meus irmãos, imagino, embora cada um saiba “a dor e a delícia de ser o que é”, como diz o poeta. Ora, algo ficou fundado ali onde cada um desempenhava o seu papel. Eis, então, por que pai é pai; mãe é mãe e filho é filho. Por favor, é preciso não se confundir e nem inverter os papéis. O preço que se pode pagar se isso acontecer é, quem sabe, ter que conviver com a droga e, portanto, algo não agradável a qualquer família, mesmo porque, dependendo do nível do vício, avança-se sobre o patrimônio, em um primeiro momento e, depois, vai-se à criminalidade patrimonial. É um desespero. Vi muito tal situação – e a estudei – quando fazia meu doutorado na Itália e sempre a tomei como muito triste, embora já naquela época eles levassem tudo muito a sério, com investimentos em pesquisas, etc. Para superar o problema, enfim, é preciso procurar gente especializada mas, realmente, o que conta é a compreensão e o amor, a começar por aquele da família.
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Qual seria a solução para acabar com a violência?
A violência é do homem: homo hominis lupo, como disse Plauto e Hobbes copiou. Logo, ela não acaba. Por sinal, ela é necessária para a sobrevivência humana, sendo certo estar ligada à pulsão de morte de Freud. Assim, é preciso aprender a conviver com ela e, se possível, reduzí-la ao máximo. Aqui, o primeiro passo – sempre se soube – chama-se cultura, em um certo nível, porque é ela que permite a sublimação, ou seja, desviar a força pulsional para objetivos aceitáveis e louváveis. A discussão, porém, não é pequena neste ponto.
De qualquer forma, para não ficar sem uma resposta marcada pelo senso comum seria o caso de dizer que se não pode deixar de atuar, sempre e sempre, nas prioridades das prioridades e, aí, estão educação, saúde e trabalho. Por certo, no final das contas, não será com bolsa família, INSS e um índice alarmante de desemprego – com um exército laboral de reserva – que se chegará a algo satisfatório.
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