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sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Polícia para quem precisa

Confronto entre policiais em São Paulo




A mais nova manchete brasileira no exterior, como se pode verificar clicando aqui, é a nossa polícia.

Se a censura do filme "Tropa de Elite" poderia ser injustificada ou exagerada, o fato é que, no dia a dia, nossos policiais são bem melhores. Ontem (16.10.2008), policiais civis em greve realizaram uma passeata em São Paulo, até a sede do Governo Estadual, reivindicando melhorias salariais, até que se encontraram com uma barreira formada por policiais militares.

Nesse momento, com a finesse peculiar das categorias, começou um grande embate, movido a bombas de efeito moral, balas de borracha, muita fumaça e, no meio disso, uma bala de .40, que acertou em cheio um coronel.

Uma solução pacífica não seria a mais adequada? Com toda a certeza. O único problema é que essa solução, em um estado policialesco como se tornou São Paulo, é de todo impensada. A polícia faz o que bem entende e seus atos exorbitantes não sofrem qualquer punição, pois são justificados na "repressão ao crime".

Agora, quando duas feras descontroladas se encontram, além de todo estardalhaço, é previsível que ambas saiam bastante feridas. E, nisso tudo, a população nada mais pode fazer que rezar para que suas escolhas políticas sejam eficientes nisso, uma faceta não tão usual da criminalidade: o embate (físico e estrondoso) entre instituições que possuem índole ditatorial.

Para mais informações, veja:

Policiais civis e militares entram em confronto em São Paulo
Protesto de policiais em São Paulo foi um tiro no pé
Coronel ferido em confronto foi alvejado por bala de pistola

terça-feira, 8 de julho de 2008

Opinião Pública - A história sem fim...

E, novamente, as coisas cíclicas retornam. Como efeito bumerangue, mas com mais força.

Eis uma das manchetes presentes em vários periódicos neste início de semana:

Morre menino metralhado em ação policial no Rio

Delegado diz que policiais que mataram menino de 3 anos no Rio agiram com intenção de matar.


Em síntese, isso foi o que aconteceu:

"Alessandra voltava de uma festa de aniversário com os dois filhos em seu carro, um Palio Weekend cinza cumbo, que foi confundido e alvejado pelos policiais militares como o carro usado pelos suspeitos perseguidos." (Fonte: Globo.com)


No meio do tiroteio, um garoto de 3 (três) anos é alvejado, na cabeça, por um dos tiros do policial. E a mãe, sem qualquer condição de ir contra a atuação desmotiva, desproporcional e criminosa desses pseudo-agentes públicos, apenas se lançou contra os tiros, para tentar evitar que seus filhos fossem machucados.

A violência desmedida para alguns é desmedida para todos. Ao aceitarmos uma polícia violenta contra pobres e criminosos, damos autorização ao Estado para que a violência se volte contra nós mesmos, sejamos ou não bandidos. Sejamos, ou não, etiquetados e desviados.
A PM que mata, mata mesmo. Sem dó, nem piedade. E a morte, seja pra um traficante internacional, seja pra uma criança, não pode nunca ser defendida. Não dessa forma arbitrária e emotiva. O Estado não é um pai durão. E, ainda que o fosse, um pai nunca mataria seus filhos.

E, pra não dizer que não falei das flores (pra ser mais específico, de seus espinhos), leia o post a seguir, datado de 18 de junho! Ou seja, menos de 15 dias atrás.

http://albertoroberto.blogspot.com/2008/06/opinio-pblica-questo-do-rio-de-janeiro.html


Como eu já tinha dito, relembrando ensinamentos da Criminologia crítica, uma coisa é invadir o morro. A sociedade rica (ou que pretende ser), engajada em seus afazeres e estranha dos outros diferentes, não se compadece. No máximo, vai fazer cara feia e falar que a situação é essa com delinquentes.


Agora, quando a polícia atua, na "cidade", como se fosse no "morro", a coisa fica feia. E dá-lhe "jornalismos" investigativos. E, lógico, leis penais mais severas.

terça-feira, 18 de março de 2008

"Entrevistas Fandárdicas" - Katia Lund

Katia Lund


Conheço o trabalho de Katia Lund há tempos. Desde que vi o excelente "Notícias de uma Guerra Particular", em uma aula de Criminologia, me transformei num viciado (no melhor sentido) pela temática. Posteriormente, tive a oportunidade de vê-la em ação, novamente, em "Cidade de Deus", uma outra obra primorosa do cinema nacional.

Seu currículo é bem expressivo. Nascida em São Paulo, mas radicada no Rio de Janeiro, formou-se em Literatura Comparada na Brown University, nos Estados Unidos e, a partir da década de 80, foi para os cinemas.

De sua primeira aparição pública, quando subiu o Morro Dona Marta, na época liderado por Marcinho VP, para gravar o clipe de Michael Jackson (They don't care about us), observava o início de seu comprometimento com a luta por melhorias sociais no Brasil. Daquela época, o seu comprometimento, que seria atestado no futuro, já se mostrava presente, pois, até para a gravação do clipe, foi necessária uma permissão do lider da favela, o que, no futuro, lhe proporcionou, posteriormente, um trânsito facilitado entre sociedade-favela e sociedade-abaixo do morro.

Posteriormente, filmou o noticiário Notícias de uma guerra particular, em parceria com João Moreira Salles, novamente no Morro Dona Marta, em que o traficante Marcinho VP era, inclusive, filmado.

Além das películas internacionalmente conhecidas em que trabalhou, como Cidade de Deus e o Paciente Inglês, também participou de Central do Brasil e diversos clipes musicais. Recentemente, dirigiu um dos 7 curtas do projeto Crianças Invisíveis, ao lado de diretores internacionalmente consagrados, como Spike Lee, John Woo.

De tudo isso, pode-se sintetizar o seguinte: quando você verificar, em qualquer película, o seu nome, é sinal de que, além de uma boa narrativa e roteiro, a história vai ter uma visão realista da sociedade, sem as máscaras da hipocrisia e do elitismo. Ou seja, um ótimo filme.

Abaixo, uma entrevista concedida à Revista Isto É, em época similar à divulgação do filme Cidade de Deus.


Você sentiu medo ao depor na polícia?

Não, foi tranquilo. São os ossos do ofício, faz parte do meu trabalho. Se estou questionando a hipocrisia na polícia, na imprensa e na sociedade, é natural que eu incomode as pessoas, sobretudo aquelas que querem manter o sistema do jeito que está. A culpa não é da polícia. Ela é apenas bucha da sociedade. É usada para manter a diferença social, porque o que mais interessa hoje é manter os excluídos afastados e sob controle. Até quando vamos continuar nessa hipocrisia? Matar ou prender o chefão do tráfico não adianta nada. O troféu do tráfico só serve para a polícia continuar fazendo seu trabalho e, de vez em quando, dar uma explicação à sociedade. Isso só serve para a imprensa vender jornal, para político se eleger e a polícia continuar, teoricamente, enganando a sociedade.


Então existe uma solução?


Se existe uma pirâmide no crime, deveríamos estar atacando o pé dessa pirâmide, e não a cabeça. É importante tirar do crime a galera que ainda está entrando nele. O problema é que a sociedade não quer se sujar e acaba usando a polícia para afastar os excluídos. Ela prefere fingir que não está enxergando nada. E nós somos cúmplices dessa situação.


Acredita que seu trabalho pode mudar isso?


Tanto a polícia quanto o governo só vão mudar quando a sociedade passar a acreditar nisso. A arte tem o poder de abrir novos caminhos. É uma arma muito poderosa no processo de conscientização, especialmente o cinema, que é audiovisual e mídia de massa. A proposta da arte é: pare, pense e comece a ver as coisas de outra maneira.



Você nasceu em berço de ouro. Não se sente um ser estranho no meio da favela?


Transito entre a favela e o asfalto como se fosse uma coisa só. Para mim, não tem a menor diferença. Meu namorado mora na Rocinha e meus amigos estão no Vidigal. Vamos ao cinema juntos, às festas, eu os convido para irem à minha casa. Esse trânsito de pessoas do asfalto na favela e vice-versa cria porosidade na sociedade e abre a possibilidade de troca de informações. Eu aprendo com eles, eles aprendem comigo. Meu trabalho é fruto disso.


Quando foi que você começou a olhar o mundo sob outra ótica?


Minha curiosidade em conhecer outras culturas é natural. Sou paulistana, meus pais americanos e estudei numa escola com 30 alunos de 25 diferentes nacionalidades. Sempre convivi com a diferença. Meus pais sempre tiveram muito dinheiro, mas são pessoas simples. Lá em casa, os empregados sempre foram tratados com respeito e eu costumava passar os fins de semana na casa de um deles. Quando cresci, morei um tempo nos Estados Unidos e lá trabalhei como faxineira e garçonete. A primeira vez que pensei em favela como comunidade foi em 1996, quando subi o Santa Marta para produzir o clipe do Michael Jackson. Foi aí que eu comecei a reparar que existia uma outra sociedade, com outros códigos.


O que a atraiu na vida da favela?


Aos 20 anos, viajei para a Índia, o Japão, a China e a Tailândia. Queria trabalhar como jornalista para a revista National Geographic. Sempre gostei de saber como vivem as pessoas, o que elas pensam, me colocar no lugar delas e ver a vida de outra maneira. Quando subi o Santa Marta foi como se eu estivesse num país estrangeiro. Como nasci em São Paulo, meus pais são americanos e em casa fui criada como se estivesse nos Estados Unidos, sempre me perguntei: Por que eu nasci no Brasil? Tive essa mesma sensação quando subi o morro.

O que mais te surpreendeu na realidade dos morros?


Descobri que os jornais rotulam as pessoas. A primeira vez que conversei com Márcio (o traficante Marcinho VP), ele já era dono do comércio de drogas no Dona Marta. De repente, eu vi o cara fazendo uma função que nunca imaginei que bandido fizesse. Ele disse: “Vocês não terão problemas aqui dentro, basta procurar a associação de moradores. Eu não quero dinheiro, só quero que a comunidade tenha o máximo de trabalho possível.” Foi a primeira vez que vi meninos no tráfico. Foi aí que comecei a questionar os rótulos que havia aceitado da imprensa. Não podia mais continuar olhando para um menino de uns 12 anos de idade e enxergá-lo como um monstro. Para um menino desse, o tráfico na favela é quase um caminho natural. É muito injusto julgarmos o outro sem nos colocarmos na sua posição. Temos de questionar esse sistema. Comecei a perceber que não entendia nada do meu mundo, do meu país.


E quanto à crítica de que o filme Cidade de Deus dá um tratamento “cosmético” à pobreza da favela?


O filme propõe uma linguagem atual. Como a gente vem de um cinema brasileiro que tem uma tradição, existe muita expectativa. Por exemplo, se falamos da questão social, temos de usar planos longos como na época do cinema novo. Cidade de Deus quebra isso, e é natural que as pessoas estranhem. O filme não perde a realidade, ele atinge e ao mesmo tempo entretém. Também tem humor. Com os videogames, nossa linguagem ficou mais rápida e mais jovem. Meu objetivo é fazer com que a pessoa saia do filme e não se esqueça dele por umas duas semanas. Quando a gente faz um filme, fazemos 50% da obra. O restante é a platéia quem faz.



Você é a favor ou contra a liberação da droga?


O cara que está fumando ou cheirando é tão culpado quanto quem vende. É todo mundo co-responsável. Fala-se do tráfico de drogas para distrair as pessoas e impedi-las de falar do que realmente interessa, que é o tráfico de armas. Esse é um assunto muito grave. É chocante ver um menino, que nem comida em casa tem, segurando uma arma que não sai por menos de R$ 5 mil. Como é possível ele ter uma arma e não ter dinheiro para comprar comida ou mesmo estudar? Sou favorável à liberação da droga. Quem quiser que use, mas tem de pagar imposto. O alcoolismo talvez seja mais perigoso do que a própria maconha. A Lei Seca, por exemplo, não funcionou e ainda serviu para criar a máfia.


Você tem liberdade de expressão quando entra numa área dominada pelo tráfico e tem de pedir permissão para trabalhar?


Nunca me senti tolhida. Agora, o que não se pode fazer é sair apontando o dedo. O rapper MV Bill, por exemplo, faz raps contra o tráfico e nunca tem problemas para entrar numa favela ou fazer shows lá. A única coisa que eles diziam para a gente era: “Faça real.” Nada de cinema americano, que costuma botar um cara dando 20 tiros de onde só é possível disparar seis. Os traficantes, quando ficam mais velhos, têm a noção de que foram tragados. Só que muitas vezes não têm escolha. Eles começam cedo para levar comida para casa e só mais tarde é que vão ter noção de que perderam a vida. É por isso que os traficantes deixam a opção da Igreja aberta para quem quer sair do tráfico. Se o cara está trabalhando na boca e é bom músico, os caras são os primeiros a dizer que ele deve sair fora. Quando comecei a fazer esse tipo de trabalho e passei a ouvir o ponto de vista deles, percebi que eles querem mesmo é ser ouvidos. Eles querem passar a existir, querem ser valorizados. É por isso que é fácil mudar essa situação. Se fossem valorizados como seres humanos, 80% dos problemas já estavam resolvidos. Quanto aos 20% restantes, é possível resolver com emprego.


E qual seria seu papel nessa mudança?


Quero potencializar o lado artístico dessa garotada. Criei a Nós no Cinema, uma ONG que vai funcionar como agência de atores e produtora de filmes. Estou seguindo a trilha do Gute Fraga (ator que há 15 anos criou uma escola de teatro no Vidigal, chamada Nós do Morro). Ele é um Deus. Quero formar líderes e assim ajudar numa transformação consciente. Além de trabalhar como atores, eles vão aprender a trabalhar como técnicos. Estamos convocando os jovens através da associação de moradores. Também estamos procurando uma sede porque quero trabalhar num lugar neutro para poder receber gente de comunidades dominadas tanto pelo Terceiro Comando quanto pelo Comando Vermelho.

O rapper MV Bill, que se transformou numa espécie de porta-voz da favela Cidade de Deus, disse que o filme pode trazer problemas para a comunidade, reforçar o estigma.


O Bill tem razão. O filme tem uma repercussão positiva e uma negativa para a Cidade de Deus. Acho que pode ser criado o estigma, mas ao mesmo tempo é preciso que as pessoas reconheçam o problema para depois começarem a mudá-lo.


Outros críticos afirmam que o filme não mostra o opressor da classe média alta, que injeta milhões no tráfico.


Nossa intenção era ser o mais fiel possível ao livro, e o livro é o ponto de vista de um garoto que está lá dentro. Quando fiz Notícias de uma guerra particular, falei com o chefe do tráfico e posso dizer que eles não sabem quem vende. Eles são o varejo, porque vem um intermediário até a favela. O Fernandinho Beira-Mar foi o primeiro que conseguiu fazer essa ponte entre o varejo e o atacado. Porque o resto não sai da favela, eles têm uma formação até a quinta, sexta série, e são principalmente consumidores do atacadista. Do mesmo jeito que o camelô que vende Nike na rua não sabe quem é o fornecedor. Paulo Lins descreveu o ponto de vista de um garoto de dentro da favela. Se colocássemos esse olhar de fora, seria um outro filme.


O que você está fazendo no momento?


Dois episódios novos para o Brava gente, da Rede Globo. Estou trabalhando com o mesmo elenco do primeiro filme e co-dirigindo com o Paulo Lins. Também estou fazendo um documentário sobre rap com a rapper Nega Gizza. A idéia é tratar esse ritmo musical como um espelho do sistema social e político no Brasil, em Cuba e nos Estados Unidos. O rap é uma outra forma de nação.


As pessoas andam apavoradas com toda essa violência urbana. E você, como faz?


Meu objetivo é ser uma pessoa livre, viver mais tranquilamente. Costumo andar na rua sem medo. Acho que o medo tem a ver um pouco com o jeito que a pessoa anda, o jeito que fala.


Você tem feito sucesso no cinema, atividade normalmente dominada pelos homens. Sente olhares machistas ao seu redor?


Até ir a Cannes, nunca tinha pensado nisso. Lá, me senti tratada como uma mulherzinha. Olhavam para mim como se eu apenas cuidasse dos meninos do filme. Aqui não, as pessoas já me conhecem. Só que a mídia muitas vezes também olha para mim com um olhar machista, como se tudo o que eu fiz e realizei até hoje não tivesse a menor importância. Isso é machismo.

Fonte: Isto É

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

"Entrevistas Fandárdicas" - Giorgio Agamben

Giorgio Agamben






A intenção desta coluna é evidenciar grandes personalidades, brasileiras ou não. Atualmente, é inafastável, para qualquer analista da sociedade, jurídica e politicamente, a leitura de Giorgio Agamben. A partir de uma visão mais atenta ao direito e a teologia, busca fazer releitura de pensadores, para, então, decifrar a dualidade presente no ordenamento político, essencialmente entre a legalidade e o uso da legalidade para perpetuar ilegalidades, mantendo um sistema coeso.

Este italiano, nascido em Roma, ensina Estética na Facolta di Design e arti della IUAV (Veneza) e no College Internacional de Philosophie de Paris. É, também, bacharel em Direito, tendo lecionado em diversas universidades, tais como a Universitá di Macerata, a Universitá di Verona e a New York University - nesta última, renunciou em protesto à política expansionista e desarrazoada dos Estados Unidos da América do Norte.

Esta entrevista, concedida a Flavia Costa e traduzida por Susana Scramin, vai abordar a temática presente na obra "Estado de Exceção" (Stato di Eccezione - Bollati Boringhieri, 2003), traduzida por Iracy D. Poleti.

Segue a entrevista*.



Na introdução de Homo Sacer I, você afirma que havia concebido inicialmente o livro como uma resposta à “sangrenta mistificação de uma nova ordem planetária” (e que em seu desenvolvimento se viu diante de problemas, como o da sacralidade da vida, que não estavam no plano inicial). Como se conforma a partir de então seu projeto intelectual?

Quando comecei a trabalhar em Homo Sacer, soube que estava abrindo um canteiro que implicaria anos de escavações e de pesquisa, algo que não poderia jamais ser levado a termo e que, em todo caso, não poderia ser esgotado certamente em um só livro. Daí que o algarismo I no frontispício de Homo Sacer é importante. Depois da publicação do livro, freqüentemente me acusam de oferecer ali conclusões pessimistas, quando na realidade deveria ter ficado claro desde o princípio que se tratava somente de um primeiro volume, no qual expunha uma série de premissas e não de conclusões. Talvez tenha chegado o momento de explicitar o plano da obra, ao menos tal como ele se apresenta agora em minha mente. Ao primeiro volume (O poder soberano e a vida nua, publicado em 1995), seguirá um segundo, que terá a forma de uma série de investigações genealógicas sobre os paradigmas (teológicos, jurídicos e biopolíticos) que têm exercido uma influência determinante sobre o desenvolvimento e a ordem política global das sociedades ocidentais. O livro Estado de exceção (publicado em 2003) não é senão a primeira dessas investigações, uma arqueologia do direito que, por evidentes razões de atualidade e de urgência, pareceu-me que devia antecipar em um volume à parte. Porém, inclusive aqui, o algarismo II, indicando a seqüência da série, e o algarismo I no frontispício indicam que se trata unicamente da primeira parte de um livro maior, que compreenderá um tipo de arqueologia da biopolítica sob a forma de diversos estudos sobre a guerra civil, a origem teológica da oikonomia, o juramento e o conceito de vida (zoé) que estavam já nos fundamentos de Homo Sacer I. O terceiro volume, que contém uma teoria do sujeito ético como testemunha, apareceu no ano de 1998 com o título Ciò che resta di Auschwitz. L’Archivio e il testimone. No entanto, talvez será somente com o quarto volume que a investigação completa aparecerá sob sua luz própria. Trata-se de um projeto para o qual não só é extremamente difícil individualizar um âmbito de investigação adequado, senão que tenho a impressão de que a cada passo o terreno desaparece debaixo dos meus pés. Posso dizer unicamente que no centro desse quarto livro estarão os conceitos de formade- vida e de uso, e que o que está posto em jogo ali é a tentativa de capturar a outra face da vida nua, uma possível transformação da biopolítica em uma nova política.


Você integra um grupo não muito extenso de pesquisadores europeus que têm realizado uma leitura atenta de autores como Martin Heidegger e Carl Schmitt, e a tem incluído no marco de um pensamento – por assim dizer – emancipatório. Como foi se articulando em sua bibliografia intelectual a leitura desses autores?

Os dois autores que você cita tiveram em minha vida um peso diferente. O encontro com Heidegger foi relativamente cedo, e ele inclusive foi determinante em minha formação depois dos seminários de Lê Thor, em 1966 e em 1968. Mais ou menos nos mesmos anos durante os quais eu lia Walter Benjamin, leitura que talvez me serviu de antídoto ante o pensamento de Heidegger. Estava em questão o conceito mesmo de filosofia, o modo pelo qual deveria responder à pergunta, prática e teórica ao mesmo tempo: que é a filosofia?

O encontro com Carl Schmitt se deu, por outro lado, relativamente tarde, e teve um caráter totalmente distinto. Era evidente (creio que é evidente para qualquer um que não seja estúpido nem tenha má-fé, ou, como acontece freqüentemente, as duas coisas juntas) que, se queria trabalhar com o direito e sobre a política, era com ele que eu deveria medir-me. Como com um inimigo, antes de tudo – mas a antinomia amigo-inimigo era precisamente uma das teses schmittianas que eu queria pôr em questão.

A recepção de sua obra tem sido polêmica em alguns países, sobretudo na Alemanha. Talvez um dos momentos mais provocadores de seu trabalho seja quando rastreia e expõe a matriz comum (a “íntima solidariedade”) entre democracia e totalitarismo. Como você comenta isso?

Na perspectiva arqueológica, que é a de minha pesquisa, as antinomias (por exemplo, a da democracia versus totalitarismo) não desaparecem, mas perdem seu caráter substancial e se transformam em campos de tensões polares, entre as quais é possível encontrar uma via de saída. Não se trata, então, de distinguir o que é bom do que é mal em Heidegger ou em Schmitt. Deixemos isto aos bem pensantes. O problema, sobretudo, é que se não se compreende o que se põe em jogo no fascismo, não se chega a observar sequer o sentido da democracia.


O que você entende por arqueologia? Que lugar ocupa em seu método de trabalho?

Meu método é arqueológico e paradigmático num sentido muito próximo ao de Foucault, mas não completamente coincidente com ele. Trata-se, diante das dicotomias que estruturam nossa cultura, de ir além das exceções que as têm produzido, porém não para encontrar um estado cronologicamente originário, mas, ao contrário, para poder compreender a situação na qual nos encontramos. A arqueologia é, nesse sentido, a única via de acesso ao presente. Porém, superar a lógica binária significa, sobretudo, ser capaz de transformar cada vez as dicotomias em bipolaridades, as oposições substanciais num campo de forças percorrido por tensões polares que estão presentes em cada um dos pontos sem que exista alguma possibilidade de traçar linhas claras de demarcação. Lógica do campo contra lógica da substância. Significa, entre outras coisas, que entre A e A se dá um terceiro elemento que não pode ser, entretanto, um novo elemento homogêneo e similar aos anteriores: ele não é outra coisa que a neutralização e a transformação dos dois primeiros. Significa, enfim, trabalhar por paradigmas, neutralizando a falsa dicotomia entre universal e particular. Um paradigma (o termo em grego quer dizer simplesmente “exemplo”) é um fenômeno particular que, enquanto tal, vale por todos os casos do mesmo gênero e adquire assim a capacidade de construir um conjunto problemático mais vasto. Nesse sentido, o panóptico em Foucault e o duplo corpo do rei em Kantorowicz são paradigmas que abrem um novo horizonte para a investigação histórica, subtraindo-a aos contextos metonímicos cronológicos (França, o século XVIII). No mesmo sentido, em meu trabalho, lancei mão constantemente dos paradigmas: o homo sacer não é somente uma figura obscura do direito romano arcaico, senão também a cifra para compreender a biopolítica contemporânea. O mesmo pode ser dito do “muçulmano” em Auschwitz e do estado de exceção.


No livro, você historiciza o processo – acelerado depois da Primeira Guerra Mundial – segundo o qual o estado de exceção se transforma em regra; o paradigma de governo dominante na política contemporânea. Como você chega a esta idéia?


Para mim tratava-se, sobretudo, de compreender a profunda transformação que se havia produzido na constituição material, isto é, na vida política das assim chamadas democracias nas quais vivemos. Está claro que nenhuma das categorias fundamentais da tradição democrática manteve seu sentido, sobre isso não podemos estar iludidos. Em Estado de exceção tentei indagar essa transformação de um ponto de vista do direito; perguntei-me o que significa viver em um estado de exceção permanente. Creio que os dois campos de investigação que Foucault deixou de lado, o direito e a teologia, são extremamente importantes para compreender nossa situação presente. Em todo caso, é nesses dois âmbitos que tenho trabalhado nesses últimos anos.


Por que você considera fundamental uma teoria geral do estado de exceção: uma teoria do vazio do direito que, contudo, o funda? Imagina uma práxis para essa teoria?


Algumas vezes foi dito que em cada livro há algo assim com um centro que permanece escondido; e que é para aproximar-se, para encontrar e – às vezes – para evitar esse centro que se escreve esse livro. Se tivesse de dizer qual é, no caso do Estado de exceção, esse núcleo problemático, diria que está na relação entre anomia e direito, que no curso da pesquisa apareceu como a estrutura constitutiva da ordem jurídica. Um dos objetivos do livro era precisamente a tentativa de abordar e analisar essa dupla natureza do direito, essa ambigüidade constitutiva da ordem jurídica pela qual esta parece estar sempre fora e dentro de si mesma, simultaneamente vida e norma, fato e direito. O estado de exceção é o lugar no qual essa ambigüidade vem à luz e, simultaneamente, o dispositivo que deveria manter unidos os dois elementos contraditórios do sistema jurídico. Ele é, nesse sentido, aquilo que funda o nexo entre violência e direito e, ao mesmo tempo, no ponto em que se torna “efetivo”, aquilo que rompe com esse nexo. E para responder à segunda parte de sua pergunta, diria que a ruptura do nexo entre violência e direito abre duas perspectivas à imaginação (a imaginação é naturalmente já uma práxis): a primeira é a de uma ação humana sem nenhuma relação com o direito, a violência revolucionária de Benjamin ou um “uso” das coisas e dos corpos que não tenha nunca a forma de um direito; a segunda é a de um direito sem nenhuma relação com a vida – o direito não aplicado, mas somente estudado, do qual Benjamin dizia que é a porta da justiça.


Você afirma que não há um retorno possível do estado de exceção em que vivemos imersos para o estado de direito. Que a tarefa que nos ocupa é, em todo caso, a de denunciar a ficção da articulação entre violência e direito, entre vida e norma, para abrir ali a cesura, o campo da política. Contudo, não nos devemos também uma teoria, não tanto do “poder constituinte” como da “instituição política”, quer dizer, uma teoria sobre a “práxis articulatória” que inclua a politicidade do vivente como um elemento central?


Precisamente porque se trata de romper o nexo entre violência e direito, o problema aqui é que devemos superar a falsa alternativa entre poder constituinte e poder constituído, entre a violência que instala o direito e a violência que o conserva. Porém, precisamente por isso me parece que não se trata tanto de “instituir” e de “articular”, como de destruir e desarticular. Em geral, em nossa cultura o homem tem sido pensado sempre com a articulação e a conjunção dos princípios opostos: uma alma e um corpo, a linguagem e a vida, nesse caso um elemento político e um elemento vivente. Devemos, ao contrário, aprender a pensar o homem como aquele que resulta da desconexão desses dois elementos e investigar não o mistério metafísico da conjunção, mas o mistério prático e político da separação.


A dinâmica de como desinstalar o instituído sem instituir ao mesmo tempo uma nova instituição remete certamente à idéia de revolução permanente. Pergunto-lhe não pelo “o que fazer?”, mas sim até onde crê que é possível e desejável orientar-se na tentativa de pensar uma política “completamente nova”?


Diria que o problema da revolução permanente é o de uma potência que não se desenvolve nunca em ato, e, ao contrário, sobrevive a ele e nele. Creio que seria extremamente importante chegar a pensar de um modo novo a relação entre a potência e o ato, o possível e o real. Não é o possível que exige ser realizado, mas é a realidade que exige tornar-se possível. Pensamento, práxis e imaginação (três coisas que jamais deveriam ser separadas) convergem nesse desafio comum: tornar possível a vida.


No primeiro capítulo – de O Estado de exceção – você assinala que, em que pese a crescente conversão das democracias parlamentares em governamentais, e o aumento do “decisionismo” do poder executivo, os cidadãos ocidentais não registram essas mudanças e crêem seguir vivendo em democracias. Você tem uma hipótese sobre por que isso acontece? Caberia enfocar esse tema com base em uma teoria sobre a sujeição voluntária ao poder disciplinar (aquilo que Legendre chama “o modo em que o poder se faz amar”)?

O problema da sujeição voluntária coincide com aqueles processos de subjetivação sobre os quais trabalhava Foucault. Foucault mostrou, parece-me, que cada subjetivação implica a inserção em uma rede de relações de poder, nesse sentido uma microfísica do poder. Eu penso que tão interessantes como os processos de subjetivação são os processos de dessubjetivação. Se nós aplicamos também aqui a transformação das dicotomias em bipolaridades, poderemos dizer que o sujeito apresenta-se como um campo de forças percorrido por duas tensões que se opõem: uma que vai até a subjetivação e outra que procede em direção oposta. O sujeito não é outra coisa que o resto, a não-consciência desses dois processos. Está claro que serão as considerações estratégicas aquelas que decidirão, a cada momento, sobre qual pólo fazer a alavanca para desativar as relações de poder, de que modo fazer jogar a dessubjetivação contra a subjetivação e viceversa. Letal é, por outro lado, toda política das identidades, ainda que se trate da identidade do contestatário e a do dissidente.


Você afirma que “vida nua” e “norma” não são coisas preexistentes à máquina biopolítica, são um produto de sua articulação. Você poderia explicar isto? Porque é mais simples compreender que o direito foi “inventado”, mas custa mais se desembaraçar da idéia de que os seres humanos somos, em algum sentido, “existências nuas”, que pouco a pouco vamos aprovisionando-nos de nossas roupagens: língua, normas, hábitos...


Aquilo que chamo vida nua é uma produção específica do poder e não um dado natural. Enquanto nos movimentarmos no espaço e retrocedermos no tempo, jamais encontraremos – nem sequer as condições mais primitivas – um homem sem linguagem e sem cultura. Nem sequer a criança é vida nua: ao contrário, vive em uma espécie de corte bizantina na qual cada ato está sempre já revestido de suas formas cerimoniais. Podemos, por outro lado, produzir artificialmente condições nas quais algo assim como uma vida nua se separa de seu contexto: o muçulmano em Auschwitz, a pessoa em estado de coma etc. É no sentido que eu dizia antes que é mais interessante indagar como se produz a desarticulação real do humano do que especular sobre como foi produzida uma articulação que, pelo o que sabemos, é um mitologema. O humano e o inumano são somente dois vetores no campo de força do vivente. E esse campo é integralmente histórico, se é verdade que se dá história de tudo aquilo de que se dá vida. Porém, nesse continuum vivente se podem produzir interrupções e cesuras: o “muçulmano” em Auschwitz e o testemunho que responde por ele são duas singularidades desse gênero.


Em Homo sacer I você diz: “O corpo técnico do Ocidente já não pode superar-se em outro corpo técnico ou integralmente político [...]. Antes será preciso fazer do próprio corpo biopolítico, da vida nua mesma, o lugar no qual se constitui e assenta uma forma de vida vertida integralmente nessa vida nua. Um bios que seja somente sua zoé”. Como você analisa as ilusões de “superar” o corpo biológico (e biopolítico) num corpo técnico?


A frase que você citou sobre um bios que é somente sua zoé é para mim o selo e a empresa do que resta pensar. Todos os problemas, incluído o da técnica, deverão ser reinscritos na perspectiva de uma vida inseparável de sua forma. No fundo, a vida fisiológica não é outra coisa que uma técnica esquecida, um saber tão antigo que já perdemos toda memória dele. Uma apropriação da técnica não poderá ser feita sem um re-pensamento preliminar do corpo biopolítico do Ocidente.


Nos últimos anos, muitas das energias do pensamento sobre a resistência e a emancipação se concentraram em desenvolver uma teoria da defecção, do êxodo (por exemplo, penso em Toni Negri e Michael Hardt, Paolo Virno, Albert Hirschmann). Quer dizer, diante da expansão totalitária em escala global, parece haver uma aposta na negatividade, no silêncio e no exit. Qual a sua opinião sobre isto?


Para dizer a verdade, não estou muito convencido de que o êxodo seja hoje um paradigma verdadeiramente praticável. O sentido desse paradigma é, por outro lado, solidário do paradigma do Império, com o qual forma sistema. A analogia com a história da relação entre vida monástica e o Império Romano nos primeiros séculos da era cristã é iluminadora. Também nessa época, fizeram frente a um poder global centralizado formas de êxodo organizado que deram vida às grandes ordens conventuais. A analogia com a situação descrita em um livro recente que teve muita sorte é evidente. Inclusive, às vezes, penso que Negri e Hardt têm perfeito equivalente em Eusebio Cesarea, o teólogo da corte de Constantino (que Overbeck definia ironicamente como o friser da peruca teológica do imperador).

Eusebio é o primeiro cristão a teorizar sobre a superioridade do único poder imperial sobre o poder das diversas pessoas e nações. Ao único Deus nos céus corresponde um único império sobre a terra. A história das relações entre Igreja e Império Romano é uma mescla e uma alternância de êxodo e alianças, de rivalidade e negociatas. Contudo, a cidade celeste de Agostinho ainda é peregrina, quer dizer, está no êxodo mesmo quando está em seu próprio terreno. Não creio que tenha sentido aplicar hoje o mesmo modelo. O êxodo da vida monástica fundava-se de fato sobre uma radical heterogeneidade da forma de vida cristã e sobre uma sólida fé comum, apesar disso, não alcançou ser verdadeiramente antagonista. Hoje, o problema é que uma forma de vida verdadeiramente heterogênea não existe, ao menos nos países do capitalismo avançado. Nas condições presentes, o êxodo pode assumir somente formas subalternas e não é uma causalidade se termina pedindo ao inimigo imperial que lhe pague um salário. Está claro que uma vida separada de sua forma, uma vida que se deixa subjetivar como vida nua não estará em condições de construir uma alternativa ao império. O que não significa que não seja possível trazer do êxodo modelos e reflexões. Penso, por exemplo, nos conceitos franciscanos de uso e de forma de vida, que são ainda hoje extremamente interessantes.


Gostou da entrevista?

Então, compre as obras de Giorgio Agamben. Após, me diga o que achou.

* Entrevista publicada na Revista do Departamento de Psicologia - UFF, v. 18- n. 1, p. 131-136, Jan./Jun. 2006.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Trechos Espetaculares de Filmes Sensacionais - "Doze Homens e uma Sentença"

"No juri can declare a man guilty unless it sure"




Em 2004, tive a oportunidade de participar de um evento fantástico. Um Tribunal do Júri.


Na época, ainda estava cursando a faculdade (7º semestre, se não me engano) e, fascinado pelo Direito Penal, como sou até hoje, estudava com afinco essa matéria. E veio a oportunidade de fazer um Tribunal do Júri, como advogado de defesa do núcleo de assistência jurídica da minha faculdade.


Era a primeira vez que vestia aquele indumentário. A toga preta, com detalhes brancos, parecia impor respeito. A possibilidade de decidir o futuro de alguém, após um embate entre a defesa e a acusação, dava todo o motivo para nervosismo e apreensão.


Não importava se se tratava de um caso até simples, em que o Ministério Público iria pedir a desqualificação do crime, de tentativa de homicídio para lesão corporal leve. Não importava, pois eu iria defender, a qualquer custo, a legítima defesa do rapaz. Críticas a parte, essa é a função constitucionalmente conferida à defesa - até porque, se refletirmos um pouco, verificaremos que já há dois órgãos estatais voltados, por grande parte de seus membros, apenas para a condenação (MP e Judiciário).


Após o interrogatório do acusado, oitiva das testemunhas e os debates orais, primeiramente o Ministério Público, após a defesa, fomos para a sala secreta do Júri, em que seria decidida a causa. No júri brasileiro, temos 7 (sete) jurados, com função de decisão fática e jurídica, como nos relembra Paulo Rangel. Na sala secreta, eles recebem dois cartões, um contendo "sim", outro, "não", e a cada pergunta do magistrado, a cada quesito, respondem de acordo com as suas convicções.


- Fulano foi o responsável pelas lesões em Ciclano, na data tal?
- A arma utilizada por Fulano foi eficiente para provocar tais lesões?
- Agiu Fulano em legitima defesa?
Etc, etc...


A sensação de participar de um julgamento desses, eu diria brevemente, é inigualável.


A meu ver, após muito refletir sobre o tema, hoje posso afirmar que o Júri é a mais legítima forma de manifestação do Judiciário. Explico o porquê.


Tanto o Executivo, quanto o legislativo, possuem representantes eleitos pelo povo. Ainda que não sejam as melhores pessoas, foi o povo, por si, que escolheu aquelas pessoas para decidir o destino do país.


No Judiciário, contudo, por se tratar de matéria técnica, exigente de curso específico e de conhecimentos superiores, os cargos são providos por concurso público. Talvez, por isso, o cidadão não veja, naquele magistrado sentenciante, um representante seu, que está colocando a Sociedade no julgamento de uma ação, utilizando-se de suas leis, usando de seus anseios.


O júri muda essa ótica. No Júri, é uma mini-sociedade, dos mais diversos estratos sociais, que deve decidir o feito. Aos jurados cabe decidir, no caso dos crimes mais graves previstos no nosso Código Penal, crimes contra a vida, se as penas mais altas devem ser aplicadas aos agentes. Isso legitima o sistema e confere ao Júri um papel imprescindível na legitimação e razoabilidade do Judiciário.


Após esse breve intróito, volto-me para o filme desta semana da coluna "Trechos Espetaculares de Filmes Sensacionais". É o espetacular, para dizer pouco, "12 homens e uma sentença" (12 Angry Men), com o ótimo "Henry Fonda".


O filme é fantástico. O que importa, sobretudo, é a narrativa e, a medida que a história vai desenrolando, verificamos que o elenco, quando bem formado, com atores de peso e carismáticos, é fundamental para um filme.


Simplificando o enredo, há a discussão acerca da constatação de um crime de homicídio, fraticídio. Nos EUA, essa conduta seria punida com pena de morte. Portanto, apenas o Júri poderia decidir a matéria.


O Júri de lá funciona de modo diverso do nosso. No nosso sistema, cabe ao magistrado analisar a competência do Júri para a acusação posta. Se a resposta for afirmativa, ele pronuncia o acusado e remete o processo para o Tribunal do Júri.


Lá, todavia, o procedimento é diverso. Após passar pelo "Grande Júri", composto por 21 pessoas, que definiriam se era competência do "Pequeno Júri" a análise do caso, o caso foi submetido aos 12 (doze) jurados.


Enquanto aqui basta uma decisão por maioria, por lá apenas há condenação quando os jurados concordam, em unanimidade, na decisão. Todo o Conselho de Sentença (designação dos Jurados) deve se posicionar da mesma forma, para, então, aplicar a pena capital. E, como não podem intervir terceiros, apenas os Jurados é que decidem os fatos, ditando a sentença, posteriormente, ao magistrado, que irá declarar o julgamento.


Na minha singela opinião, é um dos melhores filmes com temas jurídicos disponíveis no mercado. Contudo, não o alugue achando que é um blockbuster ou para final de tarde, pois o filme merece muita atenção e, além, merece reflexões. Muitas mesmo.


E, na minha opinião, evita a versão mais moderna, pois ela tira o brilho do original.


Enjoy!



quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

Redução da imputabilidade penal?

Somente reduzir resolve?
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Voltando aos temas criminológicos, vamos discutir, an passant, a redução da imputabilidade penal.


Em linhas gerais, a imputabilidade é a capacidade de alguém para ser-lhe aplicada uma pena. Ou seja, não é todo mundo que vai receber uma pena de privação de liberdade, pois ele pode não possuir essa capacidade, ser inimputável, como os que possuem demência mental, e, neste caso, devem receber outro tratamento, mais médico que criminal.


No Brasil, nós utilizamos um modelo de imputabilidade que adota tanto critérios subjetivos (capacidade mental), quanto objetivos (idade). O requisito etário é o de que apenas quem possui 18 anos pode cometer crimes e, portanto, receber penas. Quem possui idade inferior, não será tratado como criminoso, mas como, no máximo, adolescente infrator, nos termos do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Para melhor denotar o assunto, segue o seguinte artigo, de minha autoria. Apesar de possuir alguns termos técnicos, os argumentos presentes podem apresentar outros dados importantes nessa discussão, que ganha, cada dia, novos ares.

Assunto em voga atualmente, em razão de uma sensação de aumento da criminalidade, a redução da imputabilidade penal é um dos temas mais complexos da atual conjuntura da política criminal brasileira. Em que pesem os diversos argumentos jurídicos correlatos, como a (in)constitucionalidade dessa alteração etária, há óbices fáticos ao entendimento de que a redução da idade mínima para ser preso, ser considerado criminoso, venha a repercutir positivamente. A prisão, como meio ineficaz de reinserção social, a falsa aparência de aumento da criminalidade e a própria atuação estatal, em relação a eventuais criminosos, são elementos importantes nessa discussão.



A prisão, forma de punição oriunda do final da Idade Média, advinda em contraposição aos suplícios até então praticados, possui, em seu cerne, graves críticas[1]. Os gastos excessivos com a sua manutenção, a falta de proporcionalidade no castigo restritivo da liberdade e a falta de resultados fáticos objetivos – refletidos no alto número de casos de reincidência – são, além de elementos que retiram sua legitimidade, justificativas para a busca de outras formas de atuação estatal, mais eficazes e racionais.



Além desse fator, há, de maneira geral, uma ausência de critérios científicos quando se aborda o assunto da criminalidade. Em parte, a mídia contribui bastante para isso, ao inflamar sentimentos vingativos, ao mesmo tempo que requer atitudes sensatas das autoridades policiais. A diminuição da faixa etária, ao revés do decrescrimento, ocasionaria o aumento do número de crimes perpetrados, eis que, pela inclusão de mais pessoas como possíveis criminosos, maiores serão os números de crimes e, por conseqüência, maior será a criminalidade[2]. No momento em que uma conduta, antes lícita, passa a ser considerada ilícita, surge a criminalidade nesse ato e em todos os elementos que o cercam. Além do estigma daí oriundo, com o etiquetamento do status de criminoso no jovem, não haverá qualquer repercussão séria na principal causa do crime, no ordenamento vigente: a desigualdade social[3].

Para se combater o atual estado da criminalidade, é imperiosa a busca de medidas alternativas à prisão – substitutivos penais. A reinserção do adolescente na sociedade, por meio de ações estatais específicas que privilegiem a sua especial condição de ser em desenvolvimento e lhe dê meios de melhoria em sua vida, sem olvidar-se da necessidade de se diminuir as diferenças sociais, deve ser o objeto principal da política criminal[4]. Ao adolescente, envolto no mundo do crime, devem ser dados exemplos reais da possibilidade de atuação de modo não criminoso, a fim de se definir seu caráter da melhor forma possível.


Haja vista a peculiaridade dessa questão, é necessário humanizar o sistema penal brasileiro, com o esquecimento de preconceitos de índole social, a fim de se modificar o foco para as desigualdades sociais, razão principal da maioria dos crimes aqui perpetrados. Desse modo, com uma visão mais global do sistema, é possível uma maior atenção ao jovem desviante, delinqüente, como partícula essencial do meio social no qual está inserido e, via reflexa, agente modificador importantíssimo da sociedade.




Notas do texto:


[1] Maiores críticas à prisão, veja-as em FOUCALT, Michel. Vigiar e punir: história de violência nas prisões. São Paulo: Vozes, 2001.



[2] Esse fenômeno, no campo da criminologia crítica, é denominado de “criminalização secundária”. É o aspecto mediato da criação de tipos e identificações de condutas socialmente nocivas, que implica o alargamento do rol dos excluídos pela norma penal e, via indireta, aumenta a criminalidade de um determinado país.



[3] A teoria do labelling aprouch, ou do etiquetamento social, demonstrou que a definição do criminoso, em si, já é um processo excludente e que define a pessoa como criminosa, ainda que não tenha praticado qualquer infração. O criminoso não é aquele que pratica delitos; mas, sim, aquele definido pelo sistema, capturado, sem acesso aos meios culturais (em medida suficiente para livrar-se da incriminação). A partir de três constatações irretorquíveis, quais sejam, (a) a cifra oculta da criminalidade, (b) a relatividade do delito e (c) impunidade nos crimes de colarinho branco, e com fulcro no interacionismo simbólico (a realidade humana é, em essência, o reflexo das interpretações coletivas dos fatos), o etiquetamento define o desviante como aquele que, antes de ser um imputável e de ter praticado uma conduta proibida, foi interpretado pelo sistema como criminoso.



[4] Importante frisar, neste aspecto, que não cabe ao Direito Penal buscar modificar a sociedade – ao menos, isso não lhe pode ser imputado diretamente. O papel de modificadora da realidade social resta à política criminal. Para tanto, basta diferenciar a criminologia, que seria o fundamento explicativo, etiológico e causal do fenômeno criminológico, a política criminal é o fator decisivo, transformadora das experiências criminológicas em estratégias de atuação positiva, e o Direito Penal, que deve mostrar-se como um conversor, de índole operativa, da proposição jurídica geral e obrigatória.
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Dúvidas, críticas, xingamentos? Mandem suas opiniões!

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

"Entrevistas Fandárdicas" - Nilo Batista

Nilo Batista
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Nilo Batista é, na minha opinião, o maior penalista/criminólogo brasileiro vivo. Com uma forte bagagem criminológica, ele já vivenciou coisas extraordinária, que só atestam a sua capacidade de bem lidar com a criminalidade, suas variantes, e discernir seriamente a respeito de atitudes a serem tomadas para a solução desses conflito.
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Ele é professor titular de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, já foi Secretário de estado de Justiça, no Rio de Janeiro, durante o mandato de Leonel Brizola, é diretor do Instituto Carioca de Criminologia, membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), e foi um dos nomes mais citados, entre especialistas, para substituir o Ministro Sepúlveda Pertence, no Supremo Tribunal Federal.
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Há tempos pensava em postar alguma entrevista do Nilo Batista, bem como alguns excertos de suas fantásticas obras. Por ora, fica a entrevista, concedida em meados de 2006 (observem como um criminólogo consegue "prever" acontecimentos futuros...).
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A entrevista abaixo, concedida à revista "A Nova Democracia", versa sobre o recrudescimento de tratativas policialescas contra o povo, suas feições político-sociais e, finalmente, de exclusão generalizada de pessoas pobres.



O que mais o impressionou nesses acontecimentos todos?

- O mais espantoso, não para mim, é o papel da imprensa, porque ela ciosamente mantém invisível, calada, toda opinião que possa dissentir desse senso comum - que ela estimula, alavanca, repercute, produz -no sentido de olhar aquilo unicamente a partir da visão infracional, que empobrece um fenômeno tão rico como esse e que aponta apenas para a intensificação das medidas que produziram aquilo. É como se nós tivéssemos um paciente sendo envenenado por arsênico e a resposta fosse mais arsênico.

Para se ter uma idéia, a Vera
[Dr.ª Vera Malaguti], que é uma das mais destacadas professoras de criminologia do Rio de Janeiro e do país, deu uma entrevista para um jornal argentino e no dia seguinte nossa vida ficou um inferno, porque às 6:00 tocava o telefone e era a primeira das seis rádios argentinas que iriam repercutir esta entrevista.

Aqui no Brasil nada. Só tem voz quem estiver referendando as interpretações mais delirantes e, de uma forma geral, encaminhando tudo para onde os meios de comunicação, com seu fantástico poder, apontam.

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Na sua opinião, como isso pode ser explicado?

- Estamos com um processo de encarceramento, que é claramente vinculado à expansão deste capitalismo de barbárie. Só é explicado assim, porque ele começa com a expansão do modelo. Não é um fenômeno só da periferia, mas também dos países centrais, como o USA, que ainda outro dia, era apresentado pela Globo como padrão de segurança.

Tem gente presa em container, no Brasil, em Vitória, Espírito Santo.

- No estado de São Paulo, todo mês entram 700 condenados. Tinha que haver mais duas penitenciárias por mês. Além disso, querem prender usando a mesma mentalidade das prisões em ilhas marítimas do século XIX, que ainda estão no imaginário, como Alcatraz e Ilha Grande - que Brizola implodiu, e eu estava junto, ajudei a apertar o botão (quando me perguntam o que eu fiz como secretário de justiça, eu digo que foi pouca coisa, mas implodi uma prisão). A mesma mentalidade quer tirar a penitenciária do centro do Rio de Janeiro, na Frei Caneca, e jogar para a periferia, porque penitenciária é uma coisa suja.


E existe alguma solução?

- Tudo que eu vejo proposto está errado. Tem que ser exatamente o contrário. É preciso acabar com a idiotice - também um idiotismo jurídico - dos "crimes hediondos", que foi crescendo ao sabor de interesses privados, de dores que são respeitáveis enquanto pessoais, mas quando se transformam em políticas criminais é desastroso.

Metade das pessoas presas, hoje, poderia sair. É um absurdo que um garoto condenado por tráfico de drogas ou associação ao tráfico, que foi preso sem uma arma na mão, tenha que se submeter ao mesmo regime de alguém que estava armado ou cometeu crimes gravíssimos. Isso só é possível com esse fetiche que criaram do traficante, uma coisa "fantasmática", que leva a uma situação constrangedora. Quando a grande rede de controle ideológico e cultural do país mostrou aquela coisa do Falcão, meninos do tráfico, eles diziam o seguinte: "Esses são os meninos explorados pelos traficantes." Não! Aqueles são os traficantes. O que durar mais ali vai conquistar uma posição de destaque nos grupos que se dedicam ao comércio de varejo das drogas ilícitas.


O que o imperialismo tem a ver com isso?

- Junto com o modelo econômico que nos é imposto, vem também uma política criminal. Como essa política criminal não é ingênua perante o capital...

Lavagem de dinheiro é uma coisa importante para o capital especulativo financeiro transnacional, porque quando ele estiver quebrando um país em alguma parte, não vai aparecer na outra ponta um capital que ele desconhece. Em criminologia crítica o nosso interesse é sobre os crimes do dinheiro, em geral, porque dinheiro limpo...


Por sua vez, o imperialismo impõe a criminalização da pobreza, dos imigrantes, dos desempregados...

- A criminalização da imigração agora começa a ganhar contornos dramáticos, quando o Calígula do século XXI quer criminalizar o "ser" imigrante. Ponha Bush criminalizando os imigrantes e Hitler criminalizando os judeus. Qual é a diferença? Qualquer estudante de direito penal, que não seja excepcionalmente retardado, sabe que é proibido criminalizar o "ser", embora na sociedade de classes nós saibamos que é o "ser" que vai definir a seletividade do sistema penal.

Essa coisa da pirataria é a criminalização de uma estratégia de sobrevivência na pobreza. Uma pessoa que, no subúrbio, pega umas bolsas e imita uns motivos da Louis Vuitton. Parece que existe uma coisa entre a Polícia Federal e a família Louis Vuitton, porque é uma espécie de vanguarda da família. Isto é para expandir o capital monopolista. Endurecer com os devedores fiscais é ótimo para as grandes transnacionais, que não têm problemas para pagar seus impostos.

Para o capital brasileiro, para a burguesia nacional, o pessoal que deveria ser um parceiro na construção de um projeto nacional, e ainda pode ser, para eles é um desastre. Entre um grande fabricante internacional que se sustenta em vários mercados e um que está aqui disputando, quem é que vai dever ao fisco? É o brasileiro.

Finalmente, há o controle dos contingentes humanos que foram marginalizados pela destruição de parques industriais inteiros, pela abertura de fronteiras para as mercadorias, mas fechadas para os produtores diretos. Imigrante não pode, mas mercadoria que o imigrante fez pode. Há também o cancelamento dos programas assistenciais públicos, substituídos pela caridade cidadã neoliberal, pela esmola institucional.

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Como o monopólio dos meios de comunicação age nesta situação?

- A imprensa expõe os policiais e os funcionários do sistema penal, que ficam mais vulneráveis. A Globo estimulou completamente a dureza, "tem que matar e ir para o confronto", o que ocasiona uma chacina como a que houve em São Paulo. Agora eles dizem: "Execução não pode!"

Aos dias de irracionalidade dos presos, seguem-se dias de irracionalidade pública, porque a polícia está sendo lançada ao confronto. Só isso é permitido.


Por que não se pode negociar com as pessoas encarceradas nos presídios, como quer fazer crer o monopólio dos meios de comunicação?

- Essa discussão sobre negociação é ridícula. Por que não se negocia? Quando eu fui secretário de justiça, para entrar guaraná em Bangu I eu tive que despachar. O Desip não resolveu esse problema. Quando eu senti o "grande problema de consciência" que isso estava causando eu pedi o processo e despachei.

Por que preso não pode ver televisão? Eu vi o "bonequinho" da Globo dizendo "eles receberam um sonoro não" [quando pediram a instalação de televisores no presídio para assistir aos jogos da Copa do Mundo de futebol]. Ele estava satisfeito e orgulhoso.
Os presos não vão ver a Copa do Mundo? O que é isso? Em que lei está isso?

O fascismo está entrando no Brasil pela questão criminal, não tenho dúvida disso. Nós temos que interromper este processo.

Temos que entender que é lícito os presos se organizarem como grupo social, hoje expressivo. Organizados, é preciso ter um diálogo, sim. Ouvi-los.

Em 1994, haviam 100 mil presos, hoje aproximadamente 370 mil e as previsões do Ministério da Justiça são de 500 mil em 2007. Esse número significa que temos o dobro disso sob algum sistema de vigilância [livramento condicional, prisão albergue, etc]. Essas pessoas não podem se organizar?

Ninguém é, por natureza, criminoso. As pessoas cometem um crime e são responsabilizadas por ele. Criminoso não é classe social nem classe natural, como num certo momento do século XIX se imaginou. Todo homem pode, eventualmente, praticar uma infração e ser responsabilizado por isso. No momento em que ele cumpre a sua pena está tudo certo, zerou.

A política é a do isolamento das lideranças, não é?

- Em qualquer lugar do país, quando aparece uma liderança, você negocia com ela. Basta o fato objetivo da liderança, de se ter um número considerável de pessoas que observam a sua opinião e que seguem os caminhos de reivindicação que você propõe, para imediatamente isso ter uma significação política. As lideranças prisionais são um fenômeno universal desde que se criaram as prisões no capitalismo. Em todos os estudos, descrições e relatórios de prisões (temos mais de duzentos anos disso) a liderança existe. Em algum momento vai se instituir o "xerife" da cela naturalmente. Por vários critérios, é um erro e um preconceito ridículo, achar que é a força que gera a liderança (preconceito próprio dessas oligarquias que animalizam as pessoas). Por que essas lideranças, ao invés de serem objeto de um diálogo, são punidas por serem lideranças?

Isso não tem lógica, a menos que se queira realizar, como política penitenciária, os preconceitos da clientela da Daslu.

Dentro do campo da legalidade demarcada há um conjunto enorme de decisões, encaminhamentos, é possível haver uma interlocução com as lideranças. Por que isso só pode ser imposto? Sociedade escravocrata! Só enxergam a coisa de cima para baixo, vertical. Levaram um susto.

A proposta é a única coisa que eles conhecem: o chicote. O chicote do feitor na charqueada, no engenho...


O que regula a comunicação nos presídios?

- Uma prisão que tem comunicação é invariavelmente muito mais calma do que uma cadeia de isolamento. Uma restrição absoluta à comunicação não está na lei de execução penal. Pode ser aplicada como sanção disciplinar, mas não como medida genérica. Antigamente, na penitenciária Lemos Brito, tinha um orelhão no pátio, que nunca quebrava. Para dois ou três que vão querer arquitetar um crime lá de dentro, tem trezentos que só vão ter notícias da família. Não seria mais inteligente liberar a comunicação e monitorar as ligações suspeitas? Isso me parece mais racional do que esse faz-de-conta, porque de alguma forma a comunicação vai ser conseguida.

Salvo se a opção for produzir doenças mentais através da "surda", é apenas uma crueldade o isolamento completo, isso está se transformando num Estado policial fascista. Preconceitos das oligarquias e seus porta-vozes, e também da burrice deles, porque eles mesmos serão os alvos.


É justo continuar aceitando a propaganda de que essa imensa massa de presos comuns não são elementos pertencentes à sociedade?

- A "esquerda" [refere-se à falsa esquerda] vai jogar a responsabilidade sobre esses compatriotas infelicitados, a partir da situação dramática em que o povo vive desde que as riquezas nacionais começaram a ser vendidas? Não vamos conversar com centenas de milhares de brasileiros, que legitimamente podem se organizar a partir de uma situação dramática, que é essencialmente política?

Enquanto esses ignorantes que opinam, que relatam e que fazem a crônica diária estiverem aí, só vai piorar.


Para os monopólios de comunicação, os presos nunca têm razão. Todo levante é chefiado pelo tráfico e mais nada. Enquanto isso, todo os dias têm levantes. Os presos não são ouvidos,embora façam sinais desesperados.

- É completamente lamentável que todas as pessoas tenham sido mortas, mas houve uma explosão. Ninguém fala dos abusos e crueldades que acontecem nas prisões brasileiras. Não estou justificando um conjunto de depredações, de homicídios, mas estou tentando compreender para que, a partir disso, se possa fazer efetivamente alguma coisa que signifique ir para outra direção. Na linha do confronto, da guerra, que eles tanto apreciam na sua insensibilidade e ignorância, esse episódio é uma coisa que pode voltar a acontecer.


A tendência é haver, além do aproveitamento eleitoral dos episódios, um endurecimento maior da repressão à população?

- Na minha opinião houve alguns dias de cólera, que já foram aproveitados, reciclados para intensificar o discurso e agravar as condições que produziram a hecatombe.

Se voltarem essas leis duras, o que acontecer é responsabilidade direta desses parlamentares, que não procuraram se informar junto à comunidade acadêmica como um todo, não apenas os que sempre aparecem. A opinião da criminologia crítica, que é importante na Argentina, por exemplo, aqui não é.

Historicamente o discurso do medo é sempre usado para a imposição de práticas de controle autoritárias.

Fonte: A Nova Democracia, Ano V, nº 30, julho de 2006

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

"Entrevistas Fandárdicas" - Caco Barcellos

Caco Barcellos




Cláudio Barcelos de Barcelos, nacionalmente conhecido como Caco Barcellos, é um dos jornalistas mais respeitados no Brasil. E não é para menos. Ele é o que se pode chamar de grande investigador, sempre perquirindo todas as nuanças envolvidas em uma matéria, seja ela futebolística, seja a transmissão de uma guerra ao vivo.


Tive a oportunidade, alguns anos atrás, de ler o seu ótimo livro "Rota 66 - A história da polícia que mata", sobre as Rondas Ostensivas Tobias Aguiar, uma espécie de Bope da Polícia de São Paulo. As críticas e dados constantes no livro são impressionantes. E, o que fica gravado, é a boa condução dada pela narrativa de Barcellos.


Posteriormente, também li o livro "Abusado: o dono do Morro Dona Marta", que seria uma biografia do traficante Marcinho VP, lider do Morro Dona Marta, no Rio de Janeiro. Com maestria, Barcellos passava da crítica paulista para a carioca, sem perder a objetividade.


O trecho abaixo é uma entrevista publicada na Revista Vip e, nela, Barcellos responde algumas questões voltadas para o filme "Tropa de Elite", violência nas grandes cidadas e políticas de segurança.



Talk Show com Caco Barcellos

AOS 57 ANOS, ele é autor de Rota 66, que narra a ação da PM de São Paulo na matança de civis entre 1970 e 1992, e Abusado, que mostra a formação de quadrilha num morro carioca. No país que só fala de Tropa de Elite, o jornalista Caco Barcellos conta sua experiência de décadas com a (falta de) segurança públicas.

VOCÊ ASSISTIU A TROPA DE ELITE?

Ainda não consegui ver inteiro. Mas vi uns pedaços e estou acompanhando a repercussão.

E ESTÁ ACHANDO O QUÊ?

Acho interessante que as pessoas estejam falando sobre isso. Houve um tempo em que o país não discutia mais sobre segurança pública. Acho interessante que todo mundo tenha uma opinião a respeito disso. Mas a minha preocupação é no sentido de estarem enxergando o personagem central (Capitão Nascimento, interpretado por Wagner Moura) como um herói. E também me preocupo com o fato de ninguém ter discutido ainda as mortes provocadas pelo Bope (Batalhão de Operações da Polícia Especial do Rio de Janeiro). Muito está se falando sobre os métodos de atuação da polícia, sobre as torturas, o que é gravíssimo. Mas ninguém fala o essencial, que é a matança provocada pela polícia nessa área pobre da cidade. Como é o Bope quando atua no Leblon, em Ipanema? Usam aquele saco plástico na cabeça de alguém? Você conhece algum rico que foi morto pelo Bope?

NÃO, NUNCA OUVI FALAR.

Pois é. Em 30 anos de jornalismo, eu também nunca ouvi uma história assim. Nunca ouvi uma história sobre algum rico criminoso que tivesse sido morto por essa unidade especial da polícia. Se omitirmos esse dado, a discussão não é honesta. Veja que Tropa de Elite é um filme de ficção, o diretor tem toda a liberdade para tratar do que quiser na obra dele. Não quero que pareça que estou fazendo uma crítica ao filme. Mas é triste saber que a sociedade está escolhendo um matador para herói.

E O QUE ESTÁ ACONTECENDO COM ESSA SOCIEDADE?

Isso é muito antigo. A verdade é que as autoridades nunca utilizaram no Brasil o que há de mais inteligente e democrático na política de segurança pública. Muito se criticam os ireitos humanos, as ONGs, mas nunca nenhuma das idéias, das propostas das pessoas que querem que as pessoas sejam respeitadas independentemente de sua condição econômica foram aplicadas. Desde o Brasil colônia, a polícia está aí para defender os interesses dos mais endinheirados. Desde sempre a sociedade legitimou ações brutais contra aqueles desprovidos de poder, seja econômico, seja político, aqueles desprovidos de cidadania. Se a brutalidade fosse interessante, a Rota já teria transformado São Paulo em um paraíso.

O QUE MUDOU ENTRE ROTA 66 E TROPA DE ELITE?

Muita coisa. A Rota fez escola, o Bope. Mas tem anos que a polícia de São Paulo mata muito menos. Eram 1 500 pessoas em 1992, quando lancei o livro. Esse número baixou para 300. Mas a criminalidade de São Paulo não se alterou. Na verdade, a única coisa que mudou foi a redução no número de homicídios. É óbvio que, quando a polícia mata menos, a sociedade fica menos violenta. Em São Paulo, mais de 10% dos crimes de homicídio são praticados pela polícia. No Rio, esse número é mais alto, mais de 20%. Bastaria uma ação pública eficaz para que houvesse a redução do crime mais grave, que é o crime de morte.

EXISTE DIFERENÇA ENTRE AS POLÍCIAS MILITARES DE SÃO PAULO E DO RIO?

Nenhuma. Por que, por exemplo, a Polícia Federal, que é bem treinada, bem remunerada e trabalha com inteligência, não precisa provocar sequer um arranhão em uma pessoa? Elas têm seus direitos respeitados. É o mesmo país, a mesma realidade e essa polícia é eficaz. A brutalidade é incoerente. Mas investigação dá trabalho...

O QUE ACONTECEU COM VOCÊ DEPOIS DA PUBLICAÇÃO DE ROTA 66?

Essa questão... Eu não quero falar disso mais. Sofri muito com isso e não quero falar de ameaças. Fui muito perseguido na Justiça. Foram seis processos contra mim, fui absolvido em todos. Não quero mais falar porque essa questão não significa muito.

VOCÊ FREQÜENTOU DURANTE MUITO TEMPO AS FAVELAS DO RIO PARA ESCREVER ABUSADO. COMO A COMUNIDADE VÊ A POLÍCIA MILITAR?

De forma geral, a Polícia Militar do Rio de Janeiro representa o autoritarismo sem autoridade. As pessoas não têm seus direitos mínimos respeitados nas ações dos policiais nos morros. A violência está dos dois lados na favela, claro: na polícia e no tráfico. Essa história é uma loucura. Um tiro de fuzil é capaz de atravessar sete barracos de alvenaria. E atrás de traficante pode ter uma criança de 5 anos, uma senhora de 80. Mas para as autoridades quem mora no morro é bandido. E é evidente que não é assim, a maioria é formada por trabalhadores. E são todos bem informados. A sociedade não é partida como se diz. É partida só para os bacanas.

COMO ASSIM?

Quem é pobre e mora no morro tem duas vias. Ele desce para trabalhar. A gente que não sobe lá nunca para ver o que acontece, como deveríamos fazer. Conversei muito com os traficantes: quase todos têm a mãe empregada doméstica, o pai porteiro. Eles conhecem bem a vida na zona sul. No trabalho deles, dentro da casa dos bacanas, eles nunca viram a polícia agir da mesma forma. Um médico quando não emite nota fiscal numa consulta está roubando não só de uma pessoa, está roubando de todo mundo. É um crime gravíssimo. Por que o Bope não invade o consultório para ouvir uma confissão do médico que está sonegando? Fica esta pergunta: “Por que é legítimo agir com brutalidade em uma parte da cidade, não por coincidência onde estão os mais pobres, e não agir da mesma forma onde estão os ricos”?

QUANTO TEMPO VOCÊ FICOU NO MORRO SANTA MARTA PARA AS PESQUISAS DE ABUSADO?

Foram cinco anos de pesquisa. Claro que não em tempo corrido, por causa do meu trabalho. Se eu tivesse ficado lá em tempo integral, o tempo seria bem menor.E COMO FOI SUA RELAÇÃO COM A COMUNIDADE E COM OS TRAFICANTES?Foi tranqüila, como sempre é. A gente sobe o morro para fazer nosso dever, que é a cobertura dos fatos. Esse tempo foi bacana, intenso, parte da comunidade adora conversar com a imprensa – infelizmente a imprensa sobe muito pouco lá. Foi uma das reportagens em que eu mais aprendi coisas. Embora eu freqüente morros há muito tempo, não imaginava que o buraco era tão embaixo. Tinha gente contando sobre o cotidiano e sobre os crimes que cometeram. Me falaram coisas que nunca imaginei ouvir.

A COMUNIDADE TEMIA O BOPE?

Naquela época, o Bope tinha uma política de não matar. No período todo em que estive lá, os policiais do Bope nunca mataram ninguém. A polícia estava sob as ordens de Luiz Eduardo Soares (coordenador de Segurança, Justiça e Cidadania do Estado do Rio de Janeiro entre janeiro de 1999 e março de 2000). A política era de se respeitar no morro da mesma forma como se respeitava em qualquer outro lugar. O Bope estava atuando de forma eficaz, e o tráfico, na época, estava começando a falir. Houve uma ocupação pacífica e interessante no morro, pela polícia nessa época. Eu mesmo fui detido para averiguação e levado ao Bope para prestar esclarecimentos.

NINGUÉM ENFIOU PLÁSTICO NA SUA CABEÇA?

Não, naquela época eles não faziam isso.

A COMUNIDADE TEME MAIS A POLÍCIA DO QUE OS TRAFICANTES?

O que eles se queixam muito é da morte de inocentes, da criança de 9 anos, do jovem, gente potencialmente não envolvida com o tráfico. Digo potencialmente porque as ações não são feitas com pesquisa. É aleatório. “Eu acho que é aquele ali.” Agora, acreditar que uma criança de 5 anos está envolvida com isso? Eu prefiro não. Prefiro acreditar que as pessoas são inocentes até que se prove o contrário.

QUAL SUA POSIÇÃO NA QUESTÃO DA LEGALIZAÇÃO DAS DROGAS?

Não tenho opinião. Eu sou a favor de que as pessoas discutam isso. O quadro como está é muito ruim, e não discutir o problema é defendê-lo, é desejar a permanência dessa situação. Isso tem de ser discutido sem hipocrisia. Pessoas de todas as camadas sociais são usuárias de drogas, as ilegais e as legais. Há drogas legais que causam mais danos que as ilegais. É uma mudança complexa, que envolve questões bilaterais. Nossa discussão tinha de começar pela cachaça. É uma droga legal. E mata.

UMA DAS CENAS DE TROPA DE ELITE MOSTRA O CAPITÃO NASCIMENTO ESFREGANDO O ROSTO DE UM RAPAZ NO CADÁVER QUE ELES HAVIAM ACABADO DE MATAR. E DIZENDO QUE O CULPADO POR AQUILO ERA O RAPAZ, O MACONHEIRO.?

O culpado pela morte é quem mata. Parece soldado americano falando no Iraque: “Te mato porque quero seu petróleo, você é culpado por sua morte”.

POR FALAR EM MORTE, TEVE QUEM ACUSASSE ABUSADO PELA MORTE DE MARCINHO VP, QUE FALASSE QUE ELE FOI MORTO PORQUE DISSE MUITO. COMO VOCÊ REAGIU A ISSO?

Não quero nem comentar o que falaram. Como é possível alguém saber se o livro foi responsável se, passados cinco anos, a polícia não esclareceu o crime? Ninguém sabe o que aconteceu. Só que ele foi morto dentro da cadeia, e que foi um companheiro. O resto? Só Deus.

E COMO VOCÊ SE SENTIU COM A MORTE DELE?

Senti com tristeza. Sou uma pessoa que detesta ação de matador, crime de morte, e acho que meu trabalho mostra isso.

VOCÊ JÁ FOI REFÉM DE SANDINISTAS, FOI DADO COMO DESAPARECIDO EM UMA SELVA BOLIVIANA, FOI AMEAÇADO DEPOIS DE ESCREVER LIVROS. EM ALGUMA SITUAÇÃO VOCÊ PENSOU REALMENTE: “AGORA DANOU-SE”?

Teve uma situação na Nicarágua, durante a guerra (Caco cobriu a vitória dos sandinistas em 1979). Eu estava sozinho, perto de franco-atiradores. Para eles, o alvo era qualquer um. O cara me localizou da torre de uma igreja. Foi um horror aquilo ali, eu me arrastando pelo chão, fugindo das balas. Não sabia nem de onde vinham os tiros. Era curioso. Eles atiram sem nenhum motivo, nem tinham idéia de quem eu era, se eu era um guerrilheiro, podia ser também um franco-atirador sandinista. Foi muito estúpido. Mas guerra é assim.

VOCÊ DISSE EM UMA ENTREVISTA QUE NÃO REAGE MUITO BEM ÀS CRÍTICAS. VOCÊ SE COBRA MUITO?

Eu respeito muito as críticas. Mas dou um peso que não deveria dar. Se criticarem meu trabalho, eu mudo. Se criticarem um texto, mudo também. Uma matéria, a mesma coisa. Acho que, se alguém em primeira mão está criticando meu estilo, imagine quem está lá no fim do processo, o consumidor final? Acho que eu aceito bem demais as críticas. E isso me faz mal (risos).

E FOI ASSIM COM O FUTEBOL? PORQUE VOCÊ QUERIA SER JOGADOR PROFISSIONAL.

Não, não, isso tem mais a ver com violência. Lá no Sul, de onde sou, tem gente que é defensora do futebolviolência e gente que é do futebol-arte. Eu sou da segunda turma. Aí, já viu. Pau nele... Saco plástico na cabeça dele (risos).

AGORA VOCÊ TRABALHA COM UMA TURMA NOVA NO JORNALISMO. COMO É ESSA EXPERIÊNCIA?

É um pessoal que, embora em começo de carreira, está revelando uma paixão muito grande pela reportagem. Eu sempre achei que as histórias ficam muito mais atraentes quando seguem o caminho da reportagem. É legal oferecer para o telespectador as ações como provas de que as coisas que estamos falando são verdadeiras. A reportagem oferece a possibilidade de acompanhar as histórias, ouvir todos os lados.

VOCÊ JÁ REVIROU O LIXO DE ALGUMAS PESSOAS EM UMA REPORTAGEM INVESTIGATIVA PARA SABER MAIS SOBRE ELAS, SE VOCÊ REVIRASSE O SEU LIXO, O QUE PENSARIA DE VOCÊ MESMO?

Que aquilo era de uma pessoa muito obsessiva, autocrítica ao extremo. Sou um porre comigo mesmo.

E COMO SABER ISSO NO LIXO?

Quando eu encontrasse uma frase de seis palavras escrita de 56 formas diferentes (risos).

Fonte: Blog do Anderson

quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Sérgio Cabral e a criminalidade




O atual prefeito do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, foi entrevistado pelo site G1 e deu "ótimas" opiniões sobre políticas públicas e criminalidades, todas muito bem embasadas (clique aqui para ler a notícia completa) .

Analisaremos alguns pontos interessantes:

Sérgio Cabral - Eu gostaria de separar primeiro o que é o numero de homicídios numa política de confronto. Uma coisa é o homicídio do cidadão que tem sua casa assaltada e em seguida é assassinado. Roubo seguido de homicídio, latrocínio, isso é um tipo de crime. Outra coisa e entrar na favela da Coréia recebido a tiros. E, na troca de tiros, ter 12 mortos. Isso é uma outra natureza de homicídio. Quando vai acabar a política de confronto? Vai acabar quando a ordem pública puder chegar através de várias maneiras, dentre elas com o policial podendo andar fardado em qualquer lugar. Não é o que acontece hoje. Enquanto isso não for realidade, continuará havendo confronto. Isso gera morte. No momento que você tem marginalidade altamente armada com fuzis, metralhadoras, granadas, você tem um confronto. Metas são metas para alcançarmos.

Esse ponto tratado pelo governador é interessante. Ele expõe sua opinião que, na realidade, há dois tratamentos. Um para o "bandido". Outro para o "cidadão". E que os conflitos no Rio vão acabar quando a "ordem pública puder chegar", nitidamente com a entrada do policial nas favelas.

Ora, essa tese de diferenciar bandido e cidadão ganha repercussões internacionais atualmente, principalmente pela obra de um doutrinador criminalista alemão, Günther Jakobs, que defende que há dois tratamentos penais possíveis, um para o cidadão, outro para o inimigo.

Chama de inimigo aqueles que não se submetem ao poder do Estado e, por isso, não podem gozar das garantias que o Estado assegura aos cidadãos. E lista uma séria de crimes praticados por inimigos, desde terrorismo até crimes sexuais e outros graves.

Não podemos afirmar, simplesmente, que o governador não está bem apoiado doutrinariamente, pois ele até possui um suporte respeitável. Contudo, isso não é o que se espera de um governante. Nem se pode utilizar, em um país que se diz democrático, como o Brasil, argumentos de "exclusão de direitos" porque alguém vai contra as normas estipuladas.

Explico o que digo. A Constituição da República foi idealizada para todos. Todos temos direito a suas garantias, bem como podemos exigir do Poder Público que respeite nossos direitos. Da mesma forma, todos temos liberdades asseguradas, como de pensamento, de ação. Se pensarmos bem, qualquer pessoa é livre pra cometer crimes, quantos desejar. O sistema não proibe que alguém pratique crimes. O que o sistema faz, e de modo bastante incisivo, é aplicar uma sanção àquele que não se adeqüe, ou seja, a tão famosa prisão.

Quando o Governador diz que o homicídio de um cidadão é uma coisa e o homicídio de um morador da favela é outra coisa, além de ele estar novamente discriminando o morador da favela (o simples fato de ser "favelado" não revela que ninguém é criminoso), ele está criando um direito penal "da elite" e um direito penal "do pobre", um processo penal para os que "merecem" e outro para os que "não merecem". Em síntese, ele está novamente mostrando que o sistema só protege aquele que possui condições de ser protegido, aquele que pode sofrer crimes patrimoniais. Ora, quando um pobre, sem nenhuma posse, irá sofrer algum furto ou roubo? Ou, ainda, o latrocínio, que é o roubo com resultado morte?

Ele, igual Jakobs, diz que o "criminoso favelado" é um inimigo do Estado e, como tal, deve ser banido, ou seja, ser considerado um ban(d)ido, ter penas graves, não ser considerado pessoa. E, para alguém que não é pessoa, não importa um processo penal, bastanto que milicianos atirem do alto de um helicóptero a esmo (ainda que acertem uma criança...).

Essa construção pode parecer tentadora, afinal, todos somos da classe média, todos temos nossas posses e todos ficamos nervosos ou rancorosos quando sofremos crimes. Mas matar alguém por traficar, por roubar, é a melhor saída? Ainda quando se trate de um homicida, a morte é a melhor escolha? O Estado pode ser tão (ou mais) cruel que a pessoa que ele pune? O Estado pode ser vingativo?

Outro problema, e esse eu ainda não consegui descobrir uma resposta coerente, é o relacionado à definição do "inimigo", ou seja, quem é o inimigo? Quem diz o que ele é e o que ele deve sofrer? O Estado do Rio de Janeiro, durante muitos anos, somente entrou na favela pela polícia. Nenhuma política pública foi até lá. Os próprios moradores tiveram que se desenrolar, se virar, para conseguir saneamento básico, habitações mais dignas e todos os aparatos que um Estado deveria proporcionar. E, agora que todos os habitantes estão descrentes dos governantes, o que o Estado faz? Mata vários inocentes, alcunhados de "traficantes", "favelados criminosos". Pra mim, fica claro o círculo vicioso criado.

A polícia nunca conseguirá acabar com a criminalidade. Ela não foi feita pra isso. A polícia é arma de contenção, é o último recurso. Enquanto ela existe, nós sabemos que o acordo entre os viventes não está bem definido, pois precisamos de um aparato armado para dizer quem é o certo e quem é o errado. Achar, como o nobre governador, que no dia que a polícia tiver livre trânsito vai ser o fim dessa "guerra", é um erro simplista. Nas ditaduras, a polícia possui livre trânsito e, nem por isso, falamos em um Estado ideal para se viver.

Cabral - O Brasil não dá conta do câncer. Não dá conta dos que necessitam de CTIs. Não dá conta de um monte de coisas. Se for partir para isso... São duas questões que têm a ver com violência: uma é a questão das drogas que é mais internacional. O Brasil deve contribuir. A outra, é um tema que, infelizmente, não se tem coragem de discutir. É o aborto. A questão da interrupção da gravidez tem tudo a ver com a violência pública. Quem diz isso não sou eu, são os autores do livro "Freaknomics" (Steven Levitt e Stephen J. Dubner). Eles mostram que a redução da violência nos EUA na década de 90 está intrinsecamente ligada à legalização do aborto em 1975 pela suprema corte americana. Porque uma filha da classe média se quiser interromper a gravidez tem dinheiro e estrutura familiar, todo mundo sabe onde fica. Não sei por que não é fechado. Leva na Barra da Tijuca, não sei onde. Agora, a filha do favelado vai levar para onde, se o Miguel Couto não atende? Se o Rocha Faria não atende? Aí, tenta desesperadamente uma interrupção, o que provoca situação gravíssima. Sou favorável ao direito da mulher de interromper uma gravidez indesejada. Sou cristão, católico, mas que visão é essa? Esses atrasos são muito graves. Não vejo a classe política discutir isso. Fico muito aflito. Tem tudo a ver com violência. Você pega o número de filhos por mãe na Lagoa Rodrigo de Freitas, Tijuca, Méier e Copacabana, é padrão sueco. Agora, pega na Rocinha. É padrão Zâmbia, Gabão. Isso é uma fábrica de produzir marginal. Estado não dá conta. Não tem oferta da rede pública para que essas meninas possam interromper a gravidez. Isso é uma maluquice só.

Esse ponto levantado é interessantíssimo. E, como diz com acerto o governador, deve ser um tema a ser discutido no Brasil. Não apenas com convicções religiosas, mas, principalmente, com questões científicas envolvidas.

Segundo dados da Benfam, de 1998 (ou seja, há quase dez anos), a mortalidade oficial é de que uma mulher morre a cada 3 dias, vítima de um aborto mal sucedido. (veja-se que há um índice muito grande que fica oculto, de meninas que se voltam para o aborto de modo oficioso, em clínicas clandestinas ou em grandes clínicas, com altos pagamentos. Nesse ano, 1998, foram 3,58 mortes para cada 100.000 nascimentos vivos, ou, ainda, para cada 25.000 crianças nascidas vivas. Das 119 mulheres que tiveram o aborto declarado como causa de suas mortes, apenas 70% delas receberam tratamento médico. (Fonte: Sua pesquisa).

Atualmente, há hipóteses previstas no Código Penal que autorizam o aborto, quais sejam, (a) quando a concepção da criança foi fruto de alguma violência; (b) haja perigo de morte para a mãe. Nestes casos, o Juiz autoriza o aborto, inexistindo qualquer crime. Quanto às demais hipóteses, a realização de aborto caracterizaria o crime previsto nos artigos 124 e seguintes do Código Penal.

Contudo, há outras hipóteses que são altamente discutidas, como o presente embate, ainda em discussão no Supremo Tribunal Federal, sobre o abordo dos anencefalos, ou seja, de fetos que não possuem cérebro ou, ainda, que o possuem, mas de forma tão defeituosa, que não seriam capazes de viver por si só, sem auxílio de máquinas. Várias pessoas já se manifestaram, algumas com argumentos científicos, outras com jurídicos e religiosos, e ainda muito irá ser discutido sobre o fato do aborto, quando o feto não possui qualquer viabilidade de vida, ser crime. É razoável exigir que a mãe passe por todo esse sofrimento, durante pelo menos 9 meses, quando é assegurada a morte da criança? Quais resquícios psicológicos uma mãe ficaria após essa situação desesperadora? Essa é, portanto, uma das discussões postas.

A discussão americana, citada pelo governador, deu-se em razão de o porquê do aborto ser crime, já que, de um lado, várias mães diziam que, enquanto estavam na barriga, em gestação, aquilo não era uma vida autônoma, mas, sim, parte sua, e, portanto, ela poderia autolesionar-se para evitar a gravidez. De outro lado, as discussões acerca da identidade do feto como ser com vida independente da mãe, que merece ser resguardado jurídicamente.

A discussão lá é bem diferente da nossa, já que cada Estado disciplina seu próprio direito penal. Entao, entre 1967 e 1970, metade dos estados legalizaram o aborto, limitando a sua prática até o primeiro trimestre de gravidez (em regra), em caso de pedido, e a qualquer tempo, em caso de risco de morte para mãe.

Posteriormente, uma jovem texana levou a questão para a Suprema Corte americana, dizendo que o prazo fixado na lei (até o primeiro trimestre) seria inconstitucional, pois não deveria existir prazo qualquer. Este foi o caso Roe versus Wade, que, em 23.01.1973, teve por desfecho a consideração de que, com fundamento na 14ª Emenda, "a personalidade legal não existe nos Estados Unidos antes do nascimento". Ou seja, se não há personalidade legal do feto, não existiram direitos a serem protegidos. Assim, a Suprema Corte americana entendeu que o aborto, desde que autorizado por um médico, poderia ser realizado até antes do momento do nascimento.

Como devem ter percebido, a Suprema Corte dos EUA cometeu um erro primário na construção jurídica do pensamento. Considerou que o aborto protege apenas o indivíduo, aquele com personalidade legal. No Brasil, esse argumento é muito insuficiente, até porque protegemos, em nosso Código Civil, o direito dos nascituros, da mesma forma que uma pessoa, ainda não concebida, pode ser destinatária de um testamento...

Ora, a questão mais pujante, e a que rende mais discussões, não foi discutida pela Suprema Corte, se o feto possui ou não vida. Se o que o feto tem pode ser considerada vida, para fins de proteção jurídica. Pois, se ele possui vida, a morte dele é um crime contra a vida, o denominado aborto. Se não possui, não há qualquer delito (ao menos em tese), pois seria uma lesão consentida pela mãe, em um órgão que lhe pertence.

A discussão ainda renderá bastantes frutos, mas é bom que um governante tenha uma opinião aberta, não envolvida em argumentos religiosos (apenas). E, como já visto em nossos breves dados desatualizados, é um grave problema público, que onera os nossos cofres e, além disso, eventualmente fere direitos subjetivos de muitas mães.