quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Sérgio Cabral e a criminalidade




O atual prefeito do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, foi entrevistado pelo site G1 e deu "ótimas" opiniões sobre políticas públicas e criminalidades, todas muito bem embasadas (clique aqui para ler a notícia completa) .

Analisaremos alguns pontos interessantes:

Sérgio Cabral - Eu gostaria de separar primeiro o que é o numero de homicídios numa política de confronto. Uma coisa é o homicídio do cidadão que tem sua casa assaltada e em seguida é assassinado. Roubo seguido de homicídio, latrocínio, isso é um tipo de crime. Outra coisa e entrar na favela da Coréia recebido a tiros. E, na troca de tiros, ter 12 mortos. Isso é uma outra natureza de homicídio. Quando vai acabar a política de confronto? Vai acabar quando a ordem pública puder chegar através de várias maneiras, dentre elas com o policial podendo andar fardado em qualquer lugar. Não é o que acontece hoje. Enquanto isso não for realidade, continuará havendo confronto. Isso gera morte. No momento que você tem marginalidade altamente armada com fuzis, metralhadoras, granadas, você tem um confronto. Metas são metas para alcançarmos.

Esse ponto tratado pelo governador é interessante. Ele expõe sua opinião que, na realidade, há dois tratamentos. Um para o "bandido". Outro para o "cidadão". E que os conflitos no Rio vão acabar quando a "ordem pública puder chegar", nitidamente com a entrada do policial nas favelas.

Ora, essa tese de diferenciar bandido e cidadão ganha repercussões internacionais atualmente, principalmente pela obra de um doutrinador criminalista alemão, Günther Jakobs, que defende que há dois tratamentos penais possíveis, um para o cidadão, outro para o inimigo.

Chama de inimigo aqueles que não se submetem ao poder do Estado e, por isso, não podem gozar das garantias que o Estado assegura aos cidadãos. E lista uma séria de crimes praticados por inimigos, desde terrorismo até crimes sexuais e outros graves.

Não podemos afirmar, simplesmente, que o governador não está bem apoiado doutrinariamente, pois ele até possui um suporte respeitável. Contudo, isso não é o que se espera de um governante. Nem se pode utilizar, em um país que se diz democrático, como o Brasil, argumentos de "exclusão de direitos" porque alguém vai contra as normas estipuladas.

Explico o que digo. A Constituição da República foi idealizada para todos. Todos temos direito a suas garantias, bem como podemos exigir do Poder Público que respeite nossos direitos. Da mesma forma, todos temos liberdades asseguradas, como de pensamento, de ação. Se pensarmos bem, qualquer pessoa é livre pra cometer crimes, quantos desejar. O sistema não proibe que alguém pratique crimes. O que o sistema faz, e de modo bastante incisivo, é aplicar uma sanção àquele que não se adeqüe, ou seja, a tão famosa prisão.

Quando o Governador diz que o homicídio de um cidadão é uma coisa e o homicídio de um morador da favela é outra coisa, além de ele estar novamente discriminando o morador da favela (o simples fato de ser "favelado" não revela que ninguém é criminoso), ele está criando um direito penal "da elite" e um direito penal "do pobre", um processo penal para os que "merecem" e outro para os que "não merecem". Em síntese, ele está novamente mostrando que o sistema só protege aquele que possui condições de ser protegido, aquele que pode sofrer crimes patrimoniais. Ora, quando um pobre, sem nenhuma posse, irá sofrer algum furto ou roubo? Ou, ainda, o latrocínio, que é o roubo com resultado morte?

Ele, igual Jakobs, diz que o "criminoso favelado" é um inimigo do Estado e, como tal, deve ser banido, ou seja, ser considerado um ban(d)ido, ter penas graves, não ser considerado pessoa. E, para alguém que não é pessoa, não importa um processo penal, bastanto que milicianos atirem do alto de um helicóptero a esmo (ainda que acertem uma criança...).

Essa construção pode parecer tentadora, afinal, todos somos da classe média, todos temos nossas posses e todos ficamos nervosos ou rancorosos quando sofremos crimes. Mas matar alguém por traficar, por roubar, é a melhor saída? Ainda quando se trate de um homicida, a morte é a melhor escolha? O Estado pode ser tão (ou mais) cruel que a pessoa que ele pune? O Estado pode ser vingativo?

Outro problema, e esse eu ainda não consegui descobrir uma resposta coerente, é o relacionado à definição do "inimigo", ou seja, quem é o inimigo? Quem diz o que ele é e o que ele deve sofrer? O Estado do Rio de Janeiro, durante muitos anos, somente entrou na favela pela polícia. Nenhuma política pública foi até lá. Os próprios moradores tiveram que se desenrolar, se virar, para conseguir saneamento básico, habitações mais dignas e todos os aparatos que um Estado deveria proporcionar. E, agora que todos os habitantes estão descrentes dos governantes, o que o Estado faz? Mata vários inocentes, alcunhados de "traficantes", "favelados criminosos". Pra mim, fica claro o círculo vicioso criado.

A polícia nunca conseguirá acabar com a criminalidade. Ela não foi feita pra isso. A polícia é arma de contenção, é o último recurso. Enquanto ela existe, nós sabemos que o acordo entre os viventes não está bem definido, pois precisamos de um aparato armado para dizer quem é o certo e quem é o errado. Achar, como o nobre governador, que no dia que a polícia tiver livre trânsito vai ser o fim dessa "guerra", é um erro simplista. Nas ditaduras, a polícia possui livre trânsito e, nem por isso, falamos em um Estado ideal para se viver.

Cabral - O Brasil não dá conta do câncer. Não dá conta dos que necessitam de CTIs. Não dá conta de um monte de coisas. Se for partir para isso... São duas questões que têm a ver com violência: uma é a questão das drogas que é mais internacional. O Brasil deve contribuir. A outra, é um tema que, infelizmente, não se tem coragem de discutir. É o aborto. A questão da interrupção da gravidez tem tudo a ver com a violência pública. Quem diz isso não sou eu, são os autores do livro "Freaknomics" (Steven Levitt e Stephen J. Dubner). Eles mostram que a redução da violência nos EUA na década de 90 está intrinsecamente ligada à legalização do aborto em 1975 pela suprema corte americana. Porque uma filha da classe média se quiser interromper a gravidez tem dinheiro e estrutura familiar, todo mundo sabe onde fica. Não sei por que não é fechado. Leva na Barra da Tijuca, não sei onde. Agora, a filha do favelado vai levar para onde, se o Miguel Couto não atende? Se o Rocha Faria não atende? Aí, tenta desesperadamente uma interrupção, o que provoca situação gravíssima. Sou favorável ao direito da mulher de interromper uma gravidez indesejada. Sou cristão, católico, mas que visão é essa? Esses atrasos são muito graves. Não vejo a classe política discutir isso. Fico muito aflito. Tem tudo a ver com violência. Você pega o número de filhos por mãe na Lagoa Rodrigo de Freitas, Tijuca, Méier e Copacabana, é padrão sueco. Agora, pega na Rocinha. É padrão Zâmbia, Gabão. Isso é uma fábrica de produzir marginal. Estado não dá conta. Não tem oferta da rede pública para que essas meninas possam interromper a gravidez. Isso é uma maluquice só.

Esse ponto levantado é interessantíssimo. E, como diz com acerto o governador, deve ser um tema a ser discutido no Brasil. Não apenas com convicções religiosas, mas, principalmente, com questões científicas envolvidas.

Segundo dados da Benfam, de 1998 (ou seja, há quase dez anos), a mortalidade oficial é de que uma mulher morre a cada 3 dias, vítima de um aborto mal sucedido. (veja-se que há um índice muito grande que fica oculto, de meninas que se voltam para o aborto de modo oficioso, em clínicas clandestinas ou em grandes clínicas, com altos pagamentos. Nesse ano, 1998, foram 3,58 mortes para cada 100.000 nascimentos vivos, ou, ainda, para cada 25.000 crianças nascidas vivas. Das 119 mulheres que tiveram o aborto declarado como causa de suas mortes, apenas 70% delas receberam tratamento médico. (Fonte: Sua pesquisa).

Atualmente, há hipóteses previstas no Código Penal que autorizam o aborto, quais sejam, (a) quando a concepção da criança foi fruto de alguma violência; (b) haja perigo de morte para a mãe. Nestes casos, o Juiz autoriza o aborto, inexistindo qualquer crime. Quanto às demais hipóteses, a realização de aborto caracterizaria o crime previsto nos artigos 124 e seguintes do Código Penal.

Contudo, há outras hipóteses que são altamente discutidas, como o presente embate, ainda em discussão no Supremo Tribunal Federal, sobre o abordo dos anencefalos, ou seja, de fetos que não possuem cérebro ou, ainda, que o possuem, mas de forma tão defeituosa, que não seriam capazes de viver por si só, sem auxílio de máquinas. Várias pessoas já se manifestaram, algumas com argumentos científicos, outras com jurídicos e religiosos, e ainda muito irá ser discutido sobre o fato do aborto, quando o feto não possui qualquer viabilidade de vida, ser crime. É razoável exigir que a mãe passe por todo esse sofrimento, durante pelo menos 9 meses, quando é assegurada a morte da criança? Quais resquícios psicológicos uma mãe ficaria após essa situação desesperadora? Essa é, portanto, uma das discussões postas.

A discussão americana, citada pelo governador, deu-se em razão de o porquê do aborto ser crime, já que, de um lado, várias mães diziam que, enquanto estavam na barriga, em gestação, aquilo não era uma vida autônoma, mas, sim, parte sua, e, portanto, ela poderia autolesionar-se para evitar a gravidez. De outro lado, as discussões acerca da identidade do feto como ser com vida independente da mãe, que merece ser resguardado jurídicamente.

A discussão lá é bem diferente da nossa, já que cada Estado disciplina seu próprio direito penal. Entao, entre 1967 e 1970, metade dos estados legalizaram o aborto, limitando a sua prática até o primeiro trimestre de gravidez (em regra), em caso de pedido, e a qualquer tempo, em caso de risco de morte para mãe.

Posteriormente, uma jovem texana levou a questão para a Suprema Corte americana, dizendo que o prazo fixado na lei (até o primeiro trimestre) seria inconstitucional, pois não deveria existir prazo qualquer. Este foi o caso Roe versus Wade, que, em 23.01.1973, teve por desfecho a consideração de que, com fundamento na 14ª Emenda, "a personalidade legal não existe nos Estados Unidos antes do nascimento". Ou seja, se não há personalidade legal do feto, não existiram direitos a serem protegidos. Assim, a Suprema Corte americana entendeu que o aborto, desde que autorizado por um médico, poderia ser realizado até antes do momento do nascimento.

Como devem ter percebido, a Suprema Corte dos EUA cometeu um erro primário na construção jurídica do pensamento. Considerou que o aborto protege apenas o indivíduo, aquele com personalidade legal. No Brasil, esse argumento é muito insuficiente, até porque protegemos, em nosso Código Civil, o direito dos nascituros, da mesma forma que uma pessoa, ainda não concebida, pode ser destinatária de um testamento...

Ora, a questão mais pujante, e a que rende mais discussões, não foi discutida pela Suprema Corte, se o feto possui ou não vida. Se o que o feto tem pode ser considerada vida, para fins de proteção jurídica. Pois, se ele possui vida, a morte dele é um crime contra a vida, o denominado aborto. Se não possui, não há qualquer delito (ao menos em tese), pois seria uma lesão consentida pela mãe, em um órgão que lhe pertence.

A discussão ainda renderá bastantes frutos, mas é bom que um governante tenha uma opinião aberta, não envolvida em argumentos religiosos (apenas). E, como já visto em nossos breves dados desatualizados, é um grave problema público, que onera os nossos cofres e, além disso, eventualmente fere direitos subjetivos de muitas mães.

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