terça-feira, 18 de março de 2008

"Entrevistas Fandárdicas" - Katia Lund

Katia Lund


Conheço o trabalho de Katia Lund há tempos. Desde que vi o excelente "Notícias de uma Guerra Particular", em uma aula de Criminologia, me transformei num viciado (no melhor sentido) pela temática. Posteriormente, tive a oportunidade de vê-la em ação, novamente, em "Cidade de Deus", uma outra obra primorosa do cinema nacional.

Seu currículo é bem expressivo. Nascida em São Paulo, mas radicada no Rio de Janeiro, formou-se em Literatura Comparada na Brown University, nos Estados Unidos e, a partir da década de 80, foi para os cinemas.

De sua primeira aparição pública, quando subiu o Morro Dona Marta, na época liderado por Marcinho VP, para gravar o clipe de Michael Jackson (They don't care about us), observava o início de seu comprometimento com a luta por melhorias sociais no Brasil. Daquela época, o seu comprometimento, que seria atestado no futuro, já se mostrava presente, pois, até para a gravação do clipe, foi necessária uma permissão do lider da favela, o que, no futuro, lhe proporcionou, posteriormente, um trânsito facilitado entre sociedade-favela e sociedade-abaixo do morro.

Posteriormente, filmou o noticiário Notícias de uma guerra particular, em parceria com João Moreira Salles, novamente no Morro Dona Marta, em que o traficante Marcinho VP era, inclusive, filmado.

Além das películas internacionalmente conhecidas em que trabalhou, como Cidade de Deus e o Paciente Inglês, também participou de Central do Brasil e diversos clipes musicais. Recentemente, dirigiu um dos 7 curtas do projeto Crianças Invisíveis, ao lado de diretores internacionalmente consagrados, como Spike Lee, John Woo.

De tudo isso, pode-se sintetizar o seguinte: quando você verificar, em qualquer película, o seu nome, é sinal de que, além de uma boa narrativa e roteiro, a história vai ter uma visão realista da sociedade, sem as máscaras da hipocrisia e do elitismo. Ou seja, um ótimo filme.

Abaixo, uma entrevista concedida à Revista Isto É, em época similar à divulgação do filme Cidade de Deus.


Você sentiu medo ao depor na polícia?

Não, foi tranquilo. São os ossos do ofício, faz parte do meu trabalho. Se estou questionando a hipocrisia na polícia, na imprensa e na sociedade, é natural que eu incomode as pessoas, sobretudo aquelas que querem manter o sistema do jeito que está. A culpa não é da polícia. Ela é apenas bucha da sociedade. É usada para manter a diferença social, porque o que mais interessa hoje é manter os excluídos afastados e sob controle. Até quando vamos continuar nessa hipocrisia? Matar ou prender o chefão do tráfico não adianta nada. O troféu do tráfico só serve para a polícia continuar fazendo seu trabalho e, de vez em quando, dar uma explicação à sociedade. Isso só serve para a imprensa vender jornal, para político se eleger e a polícia continuar, teoricamente, enganando a sociedade.


Então existe uma solução?


Se existe uma pirâmide no crime, deveríamos estar atacando o pé dessa pirâmide, e não a cabeça. É importante tirar do crime a galera que ainda está entrando nele. O problema é que a sociedade não quer se sujar e acaba usando a polícia para afastar os excluídos. Ela prefere fingir que não está enxergando nada. E nós somos cúmplices dessa situação.


Acredita que seu trabalho pode mudar isso?


Tanto a polícia quanto o governo só vão mudar quando a sociedade passar a acreditar nisso. A arte tem o poder de abrir novos caminhos. É uma arma muito poderosa no processo de conscientização, especialmente o cinema, que é audiovisual e mídia de massa. A proposta da arte é: pare, pense e comece a ver as coisas de outra maneira.



Você nasceu em berço de ouro. Não se sente um ser estranho no meio da favela?


Transito entre a favela e o asfalto como se fosse uma coisa só. Para mim, não tem a menor diferença. Meu namorado mora na Rocinha e meus amigos estão no Vidigal. Vamos ao cinema juntos, às festas, eu os convido para irem à minha casa. Esse trânsito de pessoas do asfalto na favela e vice-versa cria porosidade na sociedade e abre a possibilidade de troca de informações. Eu aprendo com eles, eles aprendem comigo. Meu trabalho é fruto disso.


Quando foi que você começou a olhar o mundo sob outra ótica?


Minha curiosidade em conhecer outras culturas é natural. Sou paulistana, meus pais americanos e estudei numa escola com 30 alunos de 25 diferentes nacionalidades. Sempre convivi com a diferença. Meus pais sempre tiveram muito dinheiro, mas são pessoas simples. Lá em casa, os empregados sempre foram tratados com respeito e eu costumava passar os fins de semana na casa de um deles. Quando cresci, morei um tempo nos Estados Unidos e lá trabalhei como faxineira e garçonete. A primeira vez que pensei em favela como comunidade foi em 1996, quando subi o Santa Marta para produzir o clipe do Michael Jackson. Foi aí que eu comecei a reparar que existia uma outra sociedade, com outros códigos.


O que a atraiu na vida da favela?


Aos 20 anos, viajei para a Índia, o Japão, a China e a Tailândia. Queria trabalhar como jornalista para a revista National Geographic. Sempre gostei de saber como vivem as pessoas, o que elas pensam, me colocar no lugar delas e ver a vida de outra maneira. Quando subi o Santa Marta foi como se eu estivesse num país estrangeiro. Como nasci em São Paulo, meus pais são americanos e em casa fui criada como se estivesse nos Estados Unidos, sempre me perguntei: Por que eu nasci no Brasil? Tive essa mesma sensação quando subi o morro.

O que mais te surpreendeu na realidade dos morros?


Descobri que os jornais rotulam as pessoas. A primeira vez que conversei com Márcio (o traficante Marcinho VP), ele já era dono do comércio de drogas no Dona Marta. De repente, eu vi o cara fazendo uma função que nunca imaginei que bandido fizesse. Ele disse: “Vocês não terão problemas aqui dentro, basta procurar a associação de moradores. Eu não quero dinheiro, só quero que a comunidade tenha o máximo de trabalho possível.” Foi a primeira vez que vi meninos no tráfico. Foi aí que comecei a questionar os rótulos que havia aceitado da imprensa. Não podia mais continuar olhando para um menino de uns 12 anos de idade e enxergá-lo como um monstro. Para um menino desse, o tráfico na favela é quase um caminho natural. É muito injusto julgarmos o outro sem nos colocarmos na sua posição. Temos de questionar esse sistema. Comecei a perceber que não entendia nada do meu mundo, do meu país.


E quanto à crítica de que o filme Cidade de Deus dá um tratamento “cosmético” à pobreza da favela?


O filme propõe uma linguagem atual. Como a gente vem de um cinema brasileiro que tem uma tradição, existe muita expectativa. Por exemplo, se falamos da questão social, temos de usar planos longos como na época do cinema novo. Cidade de Deus quebra isso, e é natural que as pessoas estranhem. O filme não perde a realidade, ele atinge e ao mesmo tempo entretém. Também tem humor. Com os videogames, nossa linguagem ficou mais rápida e mais jovem. Meu objetivo é fazer com que a pessoa saia do filme e não se esqueça dele por umas duas semanas. Quando a gente faz um filme, fazemos 50% da obra. O restante é a platéia quem faz.



Você é a favor ou contra a liberação da droga?


O cara que está fumando ou cheirando é tão culpado quanto quem vende. É todo mundo co-responsável. Fala-se do tráfico de drogas para distrair as pessoas e impedi-las de falar do que realmente interessa, que é o tráfico de armas. Esse é um assunto muito grave. É chocante ver um menino, que nem comida em casa tem, segurando uma arma que não sai por menos de R$ 5 mil. Como é possível ele ter uma arma e não ter dinheiro para comprar comida ou mesmo estudar? Sou favorável à liberação da droga. Quem quiser que use, mas tem de pagar imposto. O alcoolismo talvez seja mais perigoso do que a própria maconha. A Lei Seca, por exemplo, não funcionou e ainda serviu para criar a máfia.


Você tem liberdade de expressão quando entra numa área dominada pelo tráfico e tem de pedir permissão para trabalhar?


Nunca me senti tolhida. Agora, o que não se pode fazer é sair apontando o dedo. O rapper MV Bill, por exemplo, faz raps contra o tráfico e nunca tem problemas para entrar numa favela ou fazer shows lá. A única coisa que eles diziam para a gente era: “Faça real.” Nada de cinema americano, que costuma botar um cara dando 20 tiros de onde só é possível disparar seis. Os traficantes, quando ficam mais velhos, têm a noção de que foram tragados. Só que muitas vezes não têm escolha. Eles começam cedo para levar comida para casa e só mais tarde é que vão ter noção de que perderam a vida. É por isso que os traficantes deixam a opção da Igreja aberta para quem quer sair do tráfico. Se o cara está trabalhando na boca e é bom músico, os caras são os primeiros a dizer que ele deve sair fora. Quando comecei a fazer esse tipo de trabalho e passei a ouvir o ponto de vista deles, percebi que eles querem mesmo é ser ouvidos. Eles querem passar a existir, querem ser valorizados. É por isso que é fácil mudar essa situação. Se fossem valorizados como seres humanos, 80% dos problemas já estavam resolvidos. Quanto aos 20% restantes, é possível resolver com emprego.


E qual seria seu papel nessa mudança?


Quero potencializar o lado artístico dessa garotada. Criei a Nós no Cinema, uma ONG que vai funcionar como agência de atores e produtora de filmes. Estou seguindo a trilha do Gute Fraga (ator que há 15 anos criou uma escola de teatro no Vidigal, chamada Nós do Morro). Ele é um Deus. Quero formar líderes e assim ajudar numa transformação consciente. Além de trabalhar como atores, eles vão aprender a trabalhar como técnicos. Estamos convocando os jovens através da associação de moradores. Também estamos procurando uma sede porque quero trabalhar num lugar neutro para poder receber gente de comunidades dominadas tanto pelo Terceiro Comando quanto pelo Comando Vermelho.

O rapper MV Bill, que se transformou numa espécie de porta-voz da favela Cidade de Deus, disse que o filme pode trazer problemas para a comunidade, reforçar o estigma.


O Bill tem razão. O filme tem uma repercussão positiva e uma negativa para a Cidade de Deus. Acho que pode ser criado o estigma, mas ao mesmo tempo é preciso que as pessoas reconheçam o problema para depois começarem a mudá-lo.


Outros críticos afirmam que o filme não mostra o opressor da classe média alta, que injeta milhões no tráfico.


Nossa intenção era ser o mais fiel possível ao livro, e o livro é o ponto de vista de um garoto que está lá dentro. Quando fiz Notícias de uma guerra particular, falei com o chefe do tráfico e posso dizer que eles não sabem quem vende. Eles são o varejo, porque vem um intermediário até a favela. O Fernandinho Beira-Mar foi o primeiro que conseguiu fazer essa ponte entre o varejo e o atacado. Porque o resto não sai da favela, eles têm uma formação até a quinta, sexta série, e são principalmente consumidores do atacadista. Do mesmo jeito que o camelô que vende Nike na rua não sabe quem é o fornecedor. Paulo Lins descreveu o ponto de vista de um garoto de dentro da favela. Se colocássemos esse olhar de fora, seria um outro filme.


O que você está fazendo no momento?


Dois episódios novos para o Brava gente, da Rede Globo. Estou trabalhando com o mesmo elenco do primeiro filme e co-dirigindo com o Paulo Lins. Também estou fazendo um documentário sobre rap com a rapper Nega Gizza. A idéia é tratar esse ritmo musical como um espelho do sistema social e político no Brasil, em Cuba e nos Estados Unidos. O rap é uma outra forma de nação.


As pessoas andam apavoradas com toda essa violência urbana. E você, como faz?


Meu objetivo é ser uma pessoa livre, viver mais tranquilamente. Costumo andar na rua sem medo. Acho que o medo tem a ver um pouco com o jeito que a pessoa anda, o jeito que fala.


Você tem feito sucesso no cinema, atividade normalmente dominada pelos homens. Sente olhares machistas ao seu redor?


Até ir a Cannes, nunca tinha pensado nisso. Lá, me senti tratada como uma mulherzinha. Olhavam para mim como se eu apenas cuidasse dos meninos do filme. Aqui não, as pessoas já me conhecem. Só que a mídia muitas vezes também olha para mim com um olhar machista, como se tudo o que eu fiz e realizei até hoje não tivesse a menor importância. Isso é machismo.

Fonte: Isto É

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