O Direito Penal sempre teve grandes expoentes na Europa. Aliás, nada mais esperado, visto que ali floresceu o direito, a codificação, bem como os primeiros ordenamentos jurídicos penais mais avançados.
Durante muito tempo, poucos doutrinadores distantes desse continente conseguiram expor com exatidão o Direito Penal. Porém, os pouco que assim fizeram, atuaram, em essência, reaplicando os ditames europeus a outras nações - o que, por certo, não possui a menor viabilidade.
Neste ponto, surge Eugenio Raúl Zaffaroni. Foi um precessor, dentre os grandes estudiosos da criminologia, a vislumbrar as complexas e únicas relações existentes na América Latina, para, assim, afastar o Direito Penal elitizado europeu, em favor de um direito penal latino. Suas obras, após 1988, expressam essa idéia, principalmente no fato de conceber um direito penal de defesa contra a autoridade, para que não ocorram, como ele gosta de frisar em suas obras, uma violência institucional pelo Estado.
O Direito Penal, em sua visão, é apenas um caminho, nunca fim em si mesmo. E é um caminho que, se não for traçado com cuidado, inverte a lógica do sistema, já que dá função primordial a algo que deveria ser excepcional.
Citamos, exemplificadamente, que Zaffaroni concebeu, em sua dogmática "funcional-redutora", a tipicidade conglobante (que incluía, dentro do juízo de tipicidade do crime, autorizações ou mandamentos normativos/estatais, como estrito cumprimento do dever legal e exercício regular de direito), a culpabilidade por vulneração (que incluia caracteres da criminologia crítica na adequação penal típica).
Atualmente, ele é ministro da Suprema Corte da Argentina (neste ponto, merecem aplausos os argentinos), professor titular de Direito Penal e Criminologia da Universidade de Buenos Aires, doutor honoris causa da Universidade do Rio de Janeiro (UFRJ) e Vice-Presidente da Associacao Internacional de Direito Penal. Possui no Brasil varios livros publicados, dos quais recomendo - Direito Penal brasileiro (otimo livro, denso, que esta apenas em seu primeiro volume), Manual de Direito Penal brasileiro (manual basico de direito penal, escrito conjuntamente com Pierangeli) e Em busca das penas perdidas (essencial para aqueles que estudam a criminologia critica).
A entrevista a seguir foi realizada por Wellington Carlos e publicada no Diario da Manha, na editoria de Cidades, em 20.05.2007.
Qual será o futuro do Direito Penal?
A legislação vai agravar mais, vamos fazer mais besteiras, vamos agredir mais a racionalidade e o ser humano. Talvez o povo vai descobrir que os políticos estão vendendo ilusões. Esse direito vai delimitar mais nossas liberdades. É isso que tentam fazer com o pretexto de dar mais segurança.
Mas filmar ruas não diminui a violência?
Alguém pesquisou violência a sério? Temos estatísticas? Temos diagnósticos? Em um hospital vamos curar tudo com penicilina?
É certo diminuir a maioridade penal?
É uma medida demagógica e vazia de conteúdo. O efeito real será jogar adolescente na cadeia. A primeira coisa que acontece lá é esse adolescente ser estuprado. Isso gera transtorno de personalidade. Fabrica ódio e condiciona condutas posteriores psicopáticas. Portanto, é fabricar assassino.
Mas na Argentina esse limite é de 16 anos, correto?
E esse modelo não poderia ser aplicado no Brasil?
Tem uma pena menor na Argentina, segundo a escala da tentativa: um terço aumentado a menos. Não é um modelo com responsabilidade plena.
Então, isso não se aplicaria também no Brasil?
Talvez. Mas também na Argentina tivemos propostas de descer a idade penal para 14 anos, tornando o jovem de 16 com responsabilidade plena. Isso foi feito em 1976 pela ditadura militar. Funcionou mal e em 1980 mudou para o sistema tradicional, onde o jovem não cumpre a pena como criminoso comum.
Discute-se por aqui a pena de morte?
Isso é uma discussão dos políticos. E seria uma discussão muito mais demagógica ainda. Os políticos sabem que não podem impor a pena de morte. Não podem estabelecer a pena de morte, pois seria o caso de denunciar o Estado à Convenção Americana dos Direitos Humanos.
Mas os Estados Unidos praticam pena de morte.
Os Estados Uidos não ratificaram a Convenção Americana dos Direitos Humanos. É um país que fala de direitos humanos, mas não assina a convenção. O Brasil teria que sair da OEA (Organização dos Estados Americanos) para aplicar a pena de morte.
O senhor já falou sobre a possível criação de um FBI na Argentina, correto?
Exatamente. O que acontece é que temos uma Polícia Federal que cuida também da cidade de Buenos Aires. Se perguntarmos para um americano se acharia normal o FBI estar pegando ladrões em Washington, os americanos diriam que estamos doidos. A função da Polícia Federal deve ser diferente. E a polícia de Buenos Aires deveria ter uma ação mais normal como pegar ladrão.
No Brasil a Polícia Federal vem se aproximando do conceito técnico do FBI, mas faz muita propaganda de seus atos.
Não conheço bem a Polícia Federal do Brasil. Mas a polícia que defendo deve ser mais técnica.
Ela seria uma polícia para combater tráfico de drogas, por exemplo?
Não penso em tráfico de drogas. Estou pensando em coisas mais sérias. Destruição em massa, como aconteceu na Argentina, com a embaixada de Israel. Penso em tráfico de armas, de pessoas, exploração em massa da prostituição, crimes econômicos, corrupção mais complexa para a Polícia Civil investigar. É preciso polícia multiespecializada formada em Ciências Econômicas, com contatos internacionais. Crimes como o bancário e financeiro, que necessitam de polícia muito técnica. A América Latina precisa de uma polícia séria, capaz de coibir estes crimes, caso do crime organizado. Eu não sei bem o que é crime organizado, mas tenho certeza que é também corrupção. Não funciona uma criminalidade organizada sem corrupção oficial.
No Brasil se aplica muito o princípio da insignificância. Ocorre o mesmo na Argentina?
Se aplica muito. Inclusive a jurisprudência reconhece. O poder punitivo tem que ser exercido em questões mais ou menos sérias. Não posso dizer que temos um exemplo de privação de liberdade se o passageiro do ônibus foi levado numa parada a mais. O mesmo ocorre com o furto de coisas sem valor. Não teríamos orçamento suficiente para arcar com processos em que o sujeito pegou um saquinho de balas. Temos que criar um sistema de infrações menores para que tudo seja resolvido de forma rápida.
A Suprema Corte da Itália diz que fazer download de músicas e filmes sem permissão das gravadoras não é mais crime.
Isso é praticamente incontrolável. Todo mundo faz, né? O mesmo aconteceu com o xerox. Acho que a proibição penal tem um espaço imaginativo do legislador e se as condições técnicas mudam é preciso mudar a lei. Hoje tiramos fotocópias de livros nas universidades. Então o âmbito de proibição está abarcando algo que não foi imaginado pelo legislador. Temos que legislar novamente se mudaram as condições. Devemos passar a punição para o Direito Civil? Realmente não sei. Vamos punir pesquisadores por usarem xerox? Vamos punir todos estudantes por conta desses direitos autorais? Punir todo mundo é impossível.
O Brasil afrouxou sua legislação de drogas. O usuário não pode mais ser preso.
Nós achamos que o tóxico ilícito para próprio consumo, que não caracterize condições de gerar perigo de tráfico, não é um problema penal. Punir isso é até mesmo inconstitucional. O Estado tem direito de intervir quando praticamos ação que pode lesar uma terceira pessoa. Se o usuário quer continuar consumindo drogas, tudo bem: isso não é um problema do Estado, mas da saúde dele. Agora é diferente de legalizarmos os tóxicos. Não podemos fazer isso só num Estado. Estamos vinculados por tratados internacionais. Não sei se poderíamos discutir esse assunto no mundo atual. É uma discussão que precisa ser resolvida pelos economistas. É uma questão de macroenomonia. A proibição gera um preço de distribuição, que tem uma renda incrível. Grande parte disso fica nos países consumidores, caso dos Estados Unidos. Estamos falando de cocaína, que é produto de economia primária. E vai acontecer com ela o que ocorreu com outros produtos primários após a Segunda Guerra Mundial. Ela vai ser substituída por produtos sintéticos. Os adeptos da Escola de Chicago dizem que o uso poderia ser liberado sem qualquer problema. Entendem que esse dinheiro se destinaria para a poupança. Por outro lado, os neokeynesianos dizem o inverso: essa liberação traria grande depressão mundial. Parece que até agora estes últimos estão vencendo.
No Brasil, o Supremo é uma corte política. Os ministros são indicados pelo presidente. Na Argentina é semelhante?
Os ministros são escolhidos pelo presidente e tem também acordo do Senado Federal, com uma maioria de 2/3 dos integrantes.
Mesmo assim, indicados pelo presidente, eles votam contra o interesse do governo?
A nomeação é política, sim, mas votamos contra o presidente quando precisa.
Como combater a violência?
Existem duas formas: prevenção primária e secundária. Na primeira, é preciso política social, escolas, buscar as raízes da desigualdade, investir no ser humano. A prevenção secundária é a polícia e o sistema de segurança. Depois do festival dos anos 90, da globalização, temos uma sociedade ainda mais estratificada. Já não podemos fazer política de prevenção primária. Em segundo lugar, as polícias foram se deteriorando cada vez mais, corrompidas pelos políticos e governantes. Isso é bastante uniforme na América Latina. Os governantes pensaram que poderiam controlar a violência trocando governabilidade por corrupção. Isso aconteceu e funcionou durante muitos anos. Mas a globalização trouxe o tráfico de drogas, armas, pessoas. Quebraram também as cadeiras de mando das próprias polícias. Por isso são tão ineficazes na prevenção secundária. Portanto, não temos prevenção primária dos conflitos. E deterioramos a prevenção secundária, além de polarizarmos as riquezas da sociedade. A solução, então, é mudar a lei penal? Simples assim? Lógico que não. A direita demagógica monta a campanha contra as esquerdas sobre a base da insegurança. As esquerdas, sempre culpadas de ser desordeiras, reagem. É uma concorrência de quem mais faz besteiras.
Preso tem que ter vida boa na cadeia? Não tem que trabalhar, por exemplo?
Teria que trabalhar, sim. Acontece que nossas cadeias não dão oportunidade. Não é questão de dizer que a gaiola seja ruim. É mais do que isso. Nós não temos condenados. Nós não temos penas. Impomos algumas penas a partir do código de processo, que seriam penas apenas preventivas. Se pegarmos 100 presos na província de Buenos Aires, cerca de 75 deles não estão condenados. Só 25 deveriam estar ali, não tiveram o devido processo legal. Vamos dizer que 25 dos presos deveriam ficar um pouco mais na cadeia, outros 25 vão ser absolvidos e outros 50 vão ser condenados e no momento da condenação vão ser libertados para cumprir penas foras. Mas todos estão presos preventivamente. Falar em sistema penitenciário, falar em tratamento, trabalho, é algo para 25% nas cadeias da América Latina. Os outros não deveriam estar ali.
Existem denúncias de que a imprensa brasileira condena o suspeito antes do Judiciário. Na Argentina é assim também?
Isso acontece quando o preso é um sujeito mais marginal. Com o rico não acontece.
Mas como mudar essa realidade injusta?
Proibir a publicação dos nomes das pessoas envolvidas bem como as fotos até ocorrer o trânsito em julgado. Na maioria dos países não se discute isso, mas existem outros que apresentam uma autolimitação da imprensa. O jornalista coloca apenas as iniciais das pessoas envolvidas. Isso ocorre mais na Europa. Os suspeitos podem entrar, inclusive, na Justiça e ganhar indenizações por conta dos abusos.
A questão mais complexa é o crime grave ou leve?
Todos concordamos que o autor de crime grave deve ir para cadeia, ter privação de liberdade. Poderíamos ter outras soluções, mas neste momento da cultura é o que podemos fazer. Todos concordam também que um crime muito leve não deve ter cadeia. O problema é que tem o crime de gravidade média. É aqui cada Estado escolhe o que quer fazer com a pessoa. Pegamos o mapa de índice prisional. Os Estados Unidos têm 500 presos por 100 mil habitantes, nós temos 150 presos por 100 mil, o Canadá tem o mais baixo do mundo, algo como 50 por 100 mil. A Finlândia tem quase o mesmo índice do Canadá. Por isso que pensamos numa comissão internacional: alguns países têm número x de vagas para colocar preso. Superado esse número, ultrapassado esse tamanho, vamos liberar aqueles que faltam um mês para sair da prisão, os que cumpriram boa parte da pena, os menos perigosos. Isso é mais racional do que empilhar presos. Por exemplo: não sei quantos mandados de prisão existem em São Paulo para serem cumpridos, mas são muitos. Pode colocar todo orçamento do Estado para prender essa gente e não vão conseguir. É loucura. Precisamos ter escola e destinar tanto dinheiro para isso parece absurdo. Os EUA têm muito preso. É claro, eles não têm limite de orçamento. Fabricam dólares, transferem dinheiro da assistência social para o sistema penal, como fizeram a partir dos anos 80. E o fato é que esse sistema de segurança pública é uma fonte de emprego. Ele gera cerca de 2 milhões de empregos nos EUA, seria uma variável para evitar o desemprego de qualquer país.
Um comentário:
Qual a fonte desse entrevista?
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