sexta-feira, 23 de maio de 2008

"Entrevistas Fandárdicas" - Paulo Lins

Paulo Lins



Após Cidade de Deus (1997), o nome de Paulo Lins ficou mundialmente conhecido. Carioca, nascido em 1958, ele retratou no livro, que deu origem ao filme, a sua infância e juventude na favela homônima, no Rio de Janeiro.

Ele verificou o nascimento e incremento do tráfico de drogas e marginalização do que, posteriormente, convencionou-se chamar "Cidade de Deus", que era, no início, um local de refúgio habitacional para onde moram movidas famílias do centro do Rio de Janeiro, após enchentes gravíssimas, na década de 60.

Com o filme, obteve 4 indicações ao Oscar, no ano de 2004 (melhores diretor, fotografia, montagem e roteiro adaptado) e ao globo de Ouro por melhor filme estrangeiro. Atualmente, é um dos grandes nomes entre os roteiristas de cinema e televisão.

Na entrevista abaixo, concedida a Paula Chagas, do Jornal da Tarde (veja o original aqui), Paulo Lins tece diversas considerações sobre a sua vida e a criminalidade do Rio de Janeiro.



­ Como você explica sua trajetória tão incomum, que o levou a ser um dos escritores mais aclamados pela crítica nos últimos tempos?


A escola me ajudou bastante, mas sempre quis ser escritor. Isso foi possível porque eu estudei antes da ditadura, quando a escola pública ainda era boa. A escola hoje em dia não é democrática. Antigamente na escola pública estudava todo mundo, ricos e pobres. Na escola particular só tinha os maus alunos. Assim, a criança rica e a pobre tinham onde conviver. Na escola que eu estudei dentro da Cidade de Deus tinha meninos de classe média. Essa separação gera muito ódio. O menino que passa fome, sai na rua e vê um menino da mesma idade dentro de um carro importado, fica com muita raiva, quer matar o menino rico. Com a convivência esse tipo de coisa seria muito mais difícil.


Então, a seu ver, um dos motivos da violência juvenil é a má qualidade da escola pública?


Com certeza. A escola acaba sendo segregadora e reprodutora da violência social. Além disso, a escola pública hoje é um lugar feio, sujo. As escolas particulares, por outro lado, têm artes, natação, línguas. Todo mundo tinha que ter acesso a isso. Para que isso ocorra é preciso um trabalho preventivo, que propicie melhores escolas, pague melhor os professores etc... Com todas essas coisas se gastaria muito menos dinheiro do que se gasta com a polícia. Só assim, também, se resolveria o problema do acesso à arte. O pobre não tem esse acesso e isso é um absurdo, porque a arte não é elitista, nem mesmo a chamada arte erudita. Só que, como a escola não ajuda, o cinema é caro e assim por diante, as pessoas vão crescendo sem um dos preceitos da vida, que é a arte. É ela que vai formar o indivíduo, como fez comigo. Antes havia cinema em Cidade de Deus, hoje não tem mais. Assim, as novas gerações têm muito menos chance do que teve a minha, na qual a maioria das pessoas conseguiu se formar ou fazer escola técnica.


Como era sua convivência com a criminalidade dentro de Cidade de Deus ?


Essa convivência começou com a pesquisa sobre crime e criminalidade nas classes populares da antropóloga Alba Zaluar, com quem trabalhei por oito anos. Eu entrevistava pessoas ligadas ao crime, desde o bandido até seus parentes. O meu acesso era facilitado por causa da minha militância nos movimentos do bairro. Fui um dos fundadores do cineclube de Cidade de Deus , participei do movimento negro, da associação de moradores e dei aulas lá. A surpresa que tive foi perceber que eu não conhecia o mundo do crime. Constatei, também, que a maioria dos bandidos é analfabeta, filhos de pais separados, e que a desestrutura familiar, que na classe média também é comum, nas classes mais baixas gera muito mais problemas. Os que têm dinheiro podem contratar terapeutas e advogados. Mas, nas classes baixas, um pai de cinco filhos vai embora, não dá mais nada para eles e não há o que fazer. Pude ver mais de perto o que leva a maioria dos bandidos a seguir esse caminho.


Foi a partir desse material que você escreveu Cidade de Deus?


Mais ou menos. Eu não escrevia nada sobre os depoimentos pois não sou da área científica. Mesmo assim, a Alba insistia para eu escrever algo sobre aquilo. Aí eu fiz uma poesia que ela mandou para o crítico literário Roberto Schrwarz. Ele gostou e recomendou que eu escrevesse um romance a partir daquilo. Foi aí que surgiu Cidade de Deus. Eu percebi, no entanto, que as entrevistas que havia feito para a pesquisa iam me servir pouco para escrever o romance, porque a ciência trabalha com conceitos, mas o romance não, o romance é vida. Então comecei a fazer novas entrevistas focando mais a história de vida dos entrevistados.


Seu romance mostra uma convivência muita tensa entre a população da favela e os bandidos. Isso se dava com você também?


O meu livro se passa antes da década de 80. Hoje em dia esse tipo de coisa não acontece mais na favela. Há uma grande estratificação social, a divisão entre bandido e trabalhador é bem definida. Depois da criação do Comando Vermelho, a condição de vida dentro da favela melhorou muito. Digo isso sem querer defender o crime organizado. Mas eles instituíram a lei segundo a qual não se pode cometer crimes dentro da favela e nem com pessoas que moram lá. Isso eles aprenderam com os presos políticos na cadeia. É claro que dentro da favela, ainda assim, se vive um clima difícil, principalmente por causa do conflito com a polícia.


Como foi essa convivência entre os presos comuns e os presos políticos na época da ditadura?


Estou escrevendo um roteiro, junto com a Lúcia Murat, chamado Quase Dois Irmãos, que fala sobre isso, pois mostra a relação da classe média com o morro da década de 50 até hoje. No início a relação se estabeleceu por causa da arte. Jornalistas, como Sérgio Cabral, se apaixonaram pelo samba do morro e iam lá para ouvir música. Foram eles que incentivaram os sambistas a gravarem e acabaram com o costume dos brancos de roubar a música deles. Com essa pesquisa descobrimos também que o Drummond ia no morro ensinar português para o Cartola e o Villa Lobos ia ensinar música, mas os dois disseram que mais aprenderam do que ensinaram. Nessa época que o samba começou a se popularizar e passou a ser gravado por cantores como Beth Carvalho e outros.


Quando essa relação começou a mudar?


Nos anos 60, com a ditadura. No roteiro, o filho do jornalista vira preso político, o filho do sambista vira preso comum e os dois vão para a mesma cadeia. Não era permitido homossexualismo, roubo nem drogas na cadeia. I No presídio da Ilha Grande os presos políticos eram maioria, por isso impuseram normas aos presos comuns.sso se deu por que os presos políticos não queriam que a ditadura tivesse desculpas para aumentar as suas penas. Foi a partir desse contato que surgiu a falange dos vermelhos, que depois se transformaria no Comando Vermelho. A repressão cortou o cabelo dos líderes da falange vermelha para identificá-los, aí todos os presos cortaram o cabelo também. Então a repressão, que é sempre muito burra, dividiu-os pelas cadeias do Rio. Ao dominar as cadeias, dominaram o lado de fora. Assim, quem não seguisse os preceitos do comando vermelho, morria.


Essa não é uma organização muito cruel e perigosa?

Como já disse antes, não estou aqui para defender bandido e muito menos o crime organizado. Eles são muito cruéis e quando há uma guerra entre eles é horrível. Digo isso porque vivenciei a guerra que aconteceu em Cidade de Deus durante dois anos por causa de quadrilhas rivais. O que quero salientar é que isso tudo acaba levando nossas crianças para dentro da criminalidade. Essa é uma história que precisa ser conhecida. Mas nós, infelizmente, não temos o costume de pesquisar nossa história. O registro disso tudo ainda é oral. Para esse roteiro as coisas foram mais fáceis porque a Lucia Murat foi presa política e tinha acesso aos principais personagens do filme. Além disso, fui um dos roteiristas do filme Orfeu, e estou trabalhando em outros dois roteiros, um deles feito a partir de Cidade de Deus.


Como é para um escritor escrever um roteiro a partir de seu próprio livro?


É um trabalho difícil, mas nesse caso eu não sou o roteirista, apenas assessoro o Bráulio Montovani, que está escrevendo o roteiro que o Fernando Meirelles vai filmar. Um outro problema para o roteirista é o fato do meu livro ter mais de cem personagens (a jornalista Dorrit Harazim contou o número de personagens, que eu nunca soube direito). O roteiro ganhou o Sundance (festival de cinema) e mistura os personagens e a cronologia do livro, ficou muito interessante. Já no Orfeu eu fui um dos quatro roteiristas e o último a entrar no trabalho. O meu outro roteiro se chama Crise na Hegemonia, e trata da perda de poder do Comando Vermelho dentro do crime organizado do Rio de Janeiro. Muitas favelas do Rio não compactuam mais com o Comando Vermelho. Apesar disso, os novos grupos mantêm a regra de que não se pode fazer mal aos moradores da favela.


Se essa regra funciona tão bem, o que causa a violência dentro das favelas do país?


O que mais provoca a violência são os confrontos com a polícia. Isso se dá por causa da falta de uma política que treine e eduque a polícia, que é do mesmo extrato social dos bandidos. A vida tanto do policial como do bandido é muito angustiante. Depois que passei a conviver com eles vi que essa não é a vida dos filmes de máfia . É uma escolha sofrida e pouco glamourosa. Acho importante que se desmistifique a figura do bandido, que muitas vezes é colocado como sendo um personagem romântico que ganha muito dinheiro. Isso é mentira, pois só quem fica rico são os que produzem e transportam a droga. Esses, nem mesmo a maioria dos bandidos sabe quem é. Mas o traficante do morro, quando chega a chefe de quadrilha, sabe que vai morrer a qualquer momento e isso acontece com 20 anos. Eles são segregados, não podem sair do morro e gastam tudo o que têm com armas. Quem ganha dinheiro com contravenção são os bicheiros. Mas os bicheiros não têm nada a ver com tráfico de drogas.


Você acha que uma criança criada no crime tem como se tornar um adulto normal?


Certamente. Só quem não tem cura são os psicopatas, que são muito poucos. Esse é um trabalho que deve ser feito pelos psicólogos. Afinal, para que servem as terapias? O problema é que isso nunca chega até os pobres. Na cadeia deveria haver um tratamento desse tipo para que quem entre lá não saia muito pior. As crianças criminosas também precisam de tratamento e de carinho. Devemos ter coragem de atacar os nossos principais problemas, como o alcolismo, que mata muito mais do que as outras drogas nas periferias do Brasil. Tudo isso que eu estou dizendo está dito há anos por gente como José Lins do Rego, Guimarães Rosa, Jorge Amado e tantos outros.


Jorge Amado disse que sempre escreve o mesmo livro, pois só pode falar da realidade que conhece. Com você é assim?


Acho que sim. O meu próximo livro tratará de um assunto que permeia a violência também, um manicômio penitenciário. Esse livro eu comecei a escrever há mais de 20 anos e teve um começo mágico. Um dia eu estava em casa lendo A História da Loucura, de Michel Foucalt, que fala do navio para onde mandavam os loucos na idade média. Fui dar uma volta e encontrei um sujeito bem esquisito que me disse: "Pô rapaz, não tô vendo nada, isso aqui parece até um manicômio penitenciário, lá dentro eu não sabia nem se era noite ou dia, parecia até que eu tava num barco pirata". Aí eu decidi fazer esse livro, que demorou tanto porque nenhuma editora acreditou em mim naquela época. Hoje eu tenho um contrato de dois anos com a Companhia das Letras para terminar meu livro. O nome provisório é O Plano de Marlon, mas acho que o editor vai querer mudar, ele sempre quer mudar alguma coisa.


Como é a relação entre o escritor e o editor de um livro?


Eu entrego o livro e ele volta para mim com as indicações de mudança. Eu só aceito se quiser, pois quem manda no livro sou eu. Mas geralmente aceito todas as sugestões pois não tenho preciosismos com minha obra. Para mim, os livros são como uma parede bem feita. Eu não acho que o artista é uma pessoa especial. Não vejo diferença entre um bom escritor e um bom motorista de ônibus. Aliás, é muito fácil acabar com essa mitificação em relação ao artista. É só pensar na sua mãe dentro de um ônibus com um péssimo motorista. Nessa hora, quem é mais importante? O motorista ou o Drummond? Com certeza você dirá que é o motorista. Acho que é por aí. Só com uma mudança de mentalidade e com o respeito a todo ser humano é que poderemos modificar nosso país e acabar com a violência dos bandidos, da polícia, das crianças e dos jovens.

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